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Os Jogos Olímpicos na televisão brasileira - Moscou 1980, Globo



*Por Felipe dos Santos Souza


(Vinheta de abertura das transmissões da TV Globo nos Jogos Olímpicos de 1980.
Postado no YouTube por Flávio Baccarat)

Narração: Luciano do Valle, Ciro José, José Hawilla e Fernando Vannucci
Comentários: Ciro José
Reportagens: José Hawilla, Fernando Vannucci, Marcelo Matte, Monika Leitão e Roberto Feith
Apresentações: José Hawilla, Fernando Vannucci e Léo Batista

Como dito na introdução desta parte do especial, a OTI endurecera as regras de compra de direitos de eventos esportivos para suas afiliadas: só poderiam ter os direitos da Copa do Mundo quem comprasse e exibisse os Jogos Olímpicos. E a Globo decidiu pagar para ver, já pensando no desastre que seria ficar fora da Copa de 1982. O autor dessa decisão da emissora do Jardim Botânico carioca tinha muito a ver com o assunto:  Armando Nogueira (1927-2010), que fizera quase toda a carreira jornalística nas páginas esportivas. Diretor de jornalismo da Globo desde 1966, Armando sabia do risco que se correria ao não transmitir as competições em Moscou. Em depoimento ao jornalista Alberto Léo, o acreano de Xapuri lembrou a intenção da OTI em fortalecer os Jogos Olímpicos, tendo como intenção que a televisão ajudasse a popularizar mais modalidades esportivas além do futebol.

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Nogueira ainda evocou a Alberto Léo uma reunião da entidade de televisão, pré-Jogos, que confirmava a decisão inicial: “A OTI se manteve firme e decidiu: quem não fizesse a Olimpíada de Moscou, em 1980, não teria direito de transmitir a Copa do Mundo de 1982, na Espanha. Lembro que ao retornar ao Brasil fui à reunião do comitê da Rede Globo. Contei a história e deixei bem claro para os presentes que, embora as outras redes que lá estivessem não dessem a menor bola para aquela decisão, eu achava que a Globo deveria mandar cobrir os Jogos Olímpicos de Moscou”.

SURTE + - Os Jogos olímpicos na televisão brasileira - Montreal 1976
Os Jogos olímpicos na Televisão brasileira - Munique 1972 


A Globo mandou: já após a Copa de 1978, começaram as reuniões para viabilizar a cobertura. Os direitos foram comprados. E nem mesmo a desistência da NBC em transmitir os Jogos para os Estados Unidos, após o boicote, inviabilizaria a cobertura global: ao contrário de 1972 e 1976, a emissora brasileira já não dependeria tanto das imagens do conglomerado norte-americano. “Antes mesmo do boicote, já sabíamos que nossa imagem seria gerada pela televisão soviética. Não tínhamos nada a ver com a NBC”, tranquilizou Ciro José Gonsales, diretor de esportes da Globo, ao Jornal do Brasil de 1º de junho de 1980.

Ainda ao JB, Ciro ainda aprofundou as explicações sobre a independência maior da TV Globo na cobertura olímpica em Moscou: “Em 1976, a imagem que transmitimos para o Brasil foi gerada pela CBC [Canadian Broadcasting Company]. Mas fizemos um contrato paralelo com a ABC [American Broadcasting Company], obtendo assim filmes e tapes para enriquecer nossa cobertura. Desta vez, contudo, usaremos apenas as imagens da televisão soviética, na parte das competições, e as nossas próprias em entrevistas, reportagens, comentários, programas fixos ou flashes ocasionais”. O diretor da emissora só se recusou a falar sobre gastos: “Por favor, não me pergunte quanto estamos gastando”.

Fosse como fosse, o investimento já rendia frutos antes mesmo que as disputas começassem em Moscou. No primeiro semestre de 1980, o 'Globo Esporte' (o noticiário da hora do almoço, iniciado em agosto de 1978) já exibia reportagens especiais sobre a preparação dos atletas brasileiros para os Jogos. Diariamente, havia ainda o Minuto Olímpico, às 22h10, programete com curiosidades da história olímpica e apresentação de atletas badalados para Moscou. Semanalmente (às 11h45 do domingo), havia o Olimpíadas 80, juntando isso tudo. Finalmente, até mesmo uma campanha a Globo fez para estimular o telespectador a praticar esportes, com inserções no meio do intervalo comercial – campanha batizada “Mexa-se”.


Luciano do Valle: já inquestionável como narrador, foi um dos principais nomes da TV Globo nos Jogos Olímpicos de 1980 (Reprodução)



Finalmente, foram selecionados os 25 enviados do canal dos Marinho a Moscou, para o trabalho no centro internacional de transmissões – nas palavras ditas em 2008 pelo coordenador geral Leonardo Gryner ao Memória Globo, projeto de memória institucional da emissora, o trabalho era “um pouco mais sofisticado que o de 1976: a gente tinha uma sala de controle, tínhamos um switcher [mesa de edição] com todos os sinais do que estava ao vivo, e a gente podia escolher o que queria gravar para os nossos VTs”. Antes da viagem, a preparação prévia, com noções do idioma russo, embora a Globo tivesse intérpretes em Moscou. Coube a Armando Nogueira e Ciro José dirigir uma equipe que tinha como principal rosto Luciano do Valle, narrador da cerimônia de abertura e das principais disputas. Na abertura, em 19 de julho, Luciano se emocionou e chorou tanto em alguns momentos que chegou até a ceder o microfone a um colega da televisão mexicana, a seu lado no estádio, para que a transmissão não ficasse em silêncio.

Além de diretor de esportes, Ciro José dividiria papéis com Luciano: ora seria comentarista (principalmente nos jogos de basquete e vôlei), ora seria ele mesmo o locutor. Mais dois enviados também narraram as disputas na capital soviética, entre 19 de julho e 3 de agosto. Um deles, mineiro de Uberaba, que chegara à Globo em 1977: Fernando Vannucci (1951-2020). O outro, editor de esportes da emissora em São Paulo, apresentador esporádico da edição paulista do Globo Esporte: José Hawilla (1944-2018). Tanto Vannucci quanto Hawilla também apresentariam os boletins diários que a Globo produziu durante os Jogos, diretamente de Moscou, às 12h45, com quinze minutos, mostrando entrevistas, análises e informações. Ambos também apareceram no Jornal Nacional, do centro internacional de transmissões, às 19h50 de Brasília, para apresentarem o bloco olímpico dentro do Jornal Nacional.

Por fim, Léo Batista (que ficara no Brasil) apresentaria o já tradicional boletim olímpico da Globo: às 23h30, depois do Jornal da Globo, vinha um resumo do dia, com uma hora de duração. Mas a experiência que Léo tinha como enviado em 1972 e 1976 – sem contar os anos de rádio – lhe valeu em outros momentos daquela cobertura. Por exemplo, no ouro do britânico Alan Wells, nos 100m do atletismo masculino. Léo estava na redação da Globo no Rio de Janeiro, e recebeu via telex um boletim sobre a vitória de Wells, com informações biográficas sobre o corredor. Imediatamente depois, foi avisado: o VT da corrida dos 100m chegara, mas houvera problemas no áudio, e ninguém em Moscou poderia narrar a prova. E Léo Batista cumpriu a tarefa repentina, se valendo das informações sobre Alan Wells que acabara de ler no boletim enviado via telex.

Finalmente, é claro, havia as transmissões ao vivo, exibidas na íntegra ou em flashes a qualquer hora da tarde, dentro da programação da emissora. Claro, as aparições brasileiras recebiam prioridade na cobertura da TV Globo – fosse no atletismo (e dentro deste, no salto triplo, com João do Pulo como forte candidato a medalha), no vôlei ou na natação. O que não quer dizer que os grandes feitos olímpicos em 1980 ficariam restritos ao boletim noturno apresentado por Léo Batista. Por exemplo: Luciano do Valle deu a voz à vitória do soviético Vladimir Salnikov nos 400m masculinos no nado livre, um dos três ouros de Salnikov em Moscou. José Hawilla narrou ao vivo um dos ouros mais badalados daqueles Jogos: a vitória do britânico Steve Ovett nos 800m do atletismo masculino, vencendo disputa renhida com o compatriota Sebastian Coe. E Ciro José foi o locutor de todas as oito medalhas do soviético Alexander Dityatin na ginástica artística.


Mas se houve um diferencial na cobertura olímpica da TV Globo em 1980, foi a presença de mais repórteres entre os enviados. Além das reportagens feitas esporadicamente pelos próprios narradores/apresentadores presentes em Moscou - Fernando Vannucci, Ciro José, José Hawilla e até Luciano do Valle -, havia mais três nomes mandados somente para as reportagens. Se em 1976 Juarez Soares era o único repórter global presente em Montreal, em 1980 o reportariado da emissora teve Monika Leitão (que logo se tornou produtora dentro da divisão de esportes da Globo, cargo que ocupou até 2018), Marcelo Matte (diretor de jornalismo da Globo Minas até 2017 – atualmente, Matte é o secretário estadual mineiro de Cultura e Turismo) e Roberto Feith (então, correspondente da Globo em Londres). Enquanto Monika e Marcelo se concentrariam na cobertura esportiva, “Bob” Feith teria de fazer matérias sobre o impacto dos Jogos Olímpicos em Moscou.

Feith tentou, produzindo matérias tanto para o Jornal Nacional como para o Fantástico. Mas foi difícil: em tempos de Guerra Fria, o apelido de “Cortina de Ferro” para o Leste Europeu não era à toa – ainda mais na principal capital daquela região. Enviado a Moscou, cinegrafista até hoje na ativa em coberturas da Globo para eventos esportivos, Daniel Andrade se impressionou, em depoimento de 2011 ao Memória Globo: “Era tão fechado que o pessoal de televisão tinha de ficar num hotel, o pessoal de jornal em outro hotel, o pessoal de rádio em outro hotel... e ninguém podia fazer comunicação entre um e outro”.

Produtor executivo e editor em Moscou (e diretor de operações da emissora até 2019, quando a deixou), Fernando Guimarães detalhou, também ao Memória Globo: “A primeira impressão que eu tive de Moscou foi que era uma cidade fantasma. Eles tiraram muita gente de lá. Por exemplo: criança, não tinha. Eles não queriam contato nenhum do pessoal de fora com os locais. (...) Nos hotéis, não entrava nenhum cidadão local. Nenhum. Só as pessoas que prestavam serviço ao hotel. A cada entrada e saída do hotel, você era revistado, você tinha de abrir seus pertences... você tinha até de abrir sua caneta e mostrar o refil”.

Os repórteres focados na cobertura esportiva tinham recordações um pouco mais agradáveis (falando ao Memória Globo, Monika Leitão lembrou em 2007: “A gente passava o dia na Vila Olímpica”). O que não quer dizer que as facilidades eram totais, como Marcelo Matte descreveu em 2011, também ao projeto de memória do grupo de comunicação: “O sinal subia e descia em dois satélites, o delay [diferença entre o momento de falar e a ida ao ar] era de cinco, seis segundos – para entrar ao vivo com um delay desses era uma confusão...”.

Entretanto, as dificuldades seguiam visíveis quando o objetivo era gravar nas ruas de Moscou. Editor de texto da Globo na cobertura, Armando Augusto “Manduca” Nogueira (filho de Armando) descreveu ao Memória Globo: “Cada equipe, quando ia fazer uma reportagem, tinha um policial da polícia secreta russa, que saía junto com a equipe para saber o que a equipe fazia. Aquele policial era versado ou em português, ou em espanhol”. Monika Leitão completou: “Eles acompanhavam e faziam um relatório diário de tudo que a gente tinha feito. E eles censuravam as coisas que não queriam que viessem para o Brasil: na hora da transmissão, no satélite, eles cortavam enquanto estavam mandando para cá”. Marcelo Matte tentou driblar a vigilância: com Daniel Andrade como cinegrafista, quis fazer uma matéria sobre como vivia uma família russa/soviética. O material foi feito, mas caiu na “censura prévia” feita nos envios via satélite: não só foi cortado, como parte da equipe global por muito pouco não foi mandada de volta.

Diante disso, parecia até piada a dificuldade encarada por Monika Leitão (e contada por ela ao jornalista Alberto Léo) para fazer as reportagens sobre a regata do iatismo que deu um dos únicos ouros do Brasil em Moscou: a vitória de Eduardo Penido e Marcos Soares, na classe 470 (narrada ao vivo por Fernando Vannucci, assim como outro ouro brasileiro no iatismo, com Alex Welter e Lars Björkstrom, na classe Tornado). Os problemas já começaram no voo turbulento que levou Monika, Daniel Andrade e dois assistentes de Moscou a Tallinn, hoje capital da Estônia, onde as regatas olímpicas aconteciam. Já em Tallinn, o COI estabelecera: haveria uma lancha para os profissionais de imprensa que cobrissem a regata. Como era pouca lancha para muita gente, combinou-se: cinegrafistas iriam, repórteres ficariam em terra firme.

Regata ocorrida, ouro confirmado para a dupla Soares/Penido na 470... e nada dos cinegrafistas voltarem. Monika Leitão foi se desesperando: sem Daniel Andrade, a entrevista com os medalhistas não poderia ser exibida nos telejornais da Globo. Tentava comunicação, mas poucos sabiam falar inglês. A repórter já ligava para Armando Nogueira, dizendo que não sabia mais o que fazer. Pouco depois, veio o alívio: a lancha dos cinegrafistas ficara à deriva, mas todos estavam bem. Já na noite de Tallinn (ainda dia no Brasil), a embarcação atracou, Daniel Andrade pôde se unir à equipe da Globo, foram feitas imagens da premiação, e vieram as matérias com os brasileiros medalhados para os noticiários da emissora.

A cerimônia de encerramento no Estádio Lenin, em 3 de agosto de 1980, deixou um misto de sentimentos entre os enviados globais a Moscou. Houve o lado bom - claro, referente à beleza da festividade, culminada com a icônica cena do mosaico em que o urso Misha, mascote daqueles Jogos, “chorava” pela despedida, fazendo Luciano do Valle também chorar na transmissão dividida com Ciro José (“Acho que saiu todo mundo chorando, todo mundo emocionado, acho que foram [as cerimônias de] abertura e encerramento mais bonitos de Olimpíadas”, se enterneceu Monika Leitão ao Memória Globo). Mas houve o lado ruim: o hermetismo com que Moscou recebeu os Jogos Olímpicos deixou Luciano do Valle saudoso, como ele próprio confessou ao “Memória Globo” em 2007. “Quando eu voltei de Moscou, mudei muito a minha forma de pensar. Comecei a dar valor a tudo: ao ar que eu respiro, acordar, ver os amigos, poder ir ao botequim, falar com as pessoas... essa liberdade que você fala que tem, e que não tem a ideia do que é não ter”.

Não era só isso que Luciano do Valle mudaria, como se verá de 1984 em diante.

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