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Coluna Surto Mundo Afora - Esporte e política se misturam sim

Por Bruno Guedes
 
Quando o soviético Valentin Prokopov acertou um soco no húngaro Ervin Zador, além de encerrar a semifinal olímpica do polo aquático de Melbourne 1956, o atleta também mostrava que esporte e política se misturam sim. Um mês antes da agressão, chegava ao fim a chamada "Operação Vendaval", da URSS, cujo objetivo era sufocar uma revolta na capital da Hungria, Budapeste. Com mais de 2.500 cidadãos mortos, não era apenas medalha de ouro que estava em disputa. E até hoje acham que isso não deve acontecer. Estão errados.

Nos últimos 15 dias as pessoas passaram a questionar a atitude dos jogadores da NBA por misturarem esporte e política. Em protesto pela tentativa de assassinato contra Jacob Blake, de 29 anos, os atletas decidiram não entrar em quadra para manifestar contra a violência policial e dando ainda mais vida ao #BlackLivesMatter. Foram acompanhados por desportistas da WNBA, do beisebol, do hóquei no gelo e até do futebol pelo planeta. Não foi a primeira vez que atletas usaram o poder de influência e mídia para se postarem contra atitudes desse tipo. E não será a última.

Esporte e política estão lado a lado desde sempre. Na Grécia Antiga, berço das Olimpíadas, as guerras de fato paravam para as competições. Outrora como status e adoração a deuses, os vencedores também carregavam o nome do seu local de origem como símbolo dessa vitória. Ou seja, política. Mas bem mais que isso. O ato de dividirem atletas por nações, como é atualmente, já configura um ato político. Você é representa onde nasceu, sua cultura, sua população.

Diz-se que o esporte é um universo que não admite diferenças e a rivalidade é apenas entre os competidores. Entretanto, tal "pureza" é uma utopia tão grande quanto achar que os que entram para as disputas são alienados ao que ocorre. Não são. Todos, sem exceção, são partes desse mundo globalizado e ao mesmo tempo plural.

Assim como na sociedade, as modalidades absorvem atletas de diferentes esferas. E, em muitos casos, alguns esportes refletem as diferenças socioeconômicas. Como por exemplo a vela, cuja maioria dos praticantes são economicamente mais confortáveis, ou o futebol, onde acontece o inverso. Isso reflete diretamente em visões distintas de mundo e vivência. Uma pluralidade que não entra nas disputas, mas interfere nelas.

Por conta disso, é impossível separar política e esporte. O ativismo esportivo existe, é necessário e o que faz mover a roda social. Diferentemente de uma pessoa anônima, um atleta de fama consegue alcançar mais pessoas e a representatividade aos atos que defende. Principalmente no caso das minorias, como nesse do basquete americano. Mas tal movimento vai muito além disso. Quase sempre suas manifestações estão ligadas às práticas de países e seus líderes.

O julgamento do certo ou errado pode ser interpretado da mais variada maneira. Por isso é política. Ela faz parte de algo que está além das regras limitadas de cada evento esportivo, de cada regulamento específico. Essa relação é comum e, mesmo negativa ou positiva, não é possível ser controlada nem mesmo por entidades que organizam tais torneios, ainda que elas tentem.

Caso por exemplo do judoca egípcio Islam El-Shehaby que se negou a cumprimentar o israelense Or Sasson após perder uma luta nos Jogos Olímpicos de 2016, no Rio de Janeiro. Israel tem relações conturbados com países de cultura árabe, como o Egito, com quem entrou até em guerra nos anos 60. Ou então a Seleção da Croácia, que no Campeonato Europeu de 1995, se recusou a subir no pódio em que estava a Iugoslávia, campeã do torneio e em guerra com o país.

Mas o maior dos casos, certamente, são os dois boicotes olímpicos: os países capitalistas se recusando a disputar Moscou 1980 e os socialistas Los Angeles 1984. Algo que abriu uma ferida grande e gerou o maior de todos os debates acerca de até onde a política pode ir. O ursinho Misha chorou. Mas ele era, também, mais uma representação dessa politicagem. O esporte, que há décadas era uma bandeira ideológica dos países, ganhou o mais alto simbolismo dessa relação.

Não cabe aos que estão fora do contexto americano julgar as manifestações, mas sim compreendê-las. No caso da NBA, são em sua maioria negros, de origem humilde e que cresceram sob a face mais nojenta do racismo. Se há quem tenha lugar de fala nessa história, são estes jogadores. A visibilidade deles virou um instrumento que poderia atingir outros silenciados. E assim foi, com o esporte sendo espelho da sociedade

Ah... sabe aquela semifinal olímpica do polo aquático? Os húngaros ganharam o direito de ir à final, onde conquistariam o tetracampeonato olímpico - hoje já são nove ouros -, ao vencerem a União Soviética por 4 a 0. A piscina manchada de vermelho pelo sangue de Zador era semelhante ao das ruas de Budapeste.

Se a "Vendaval" acertou em cheio o coração da Hungria, a resposta veio nas piscinas e na única arma que aqueles cidadãos tinham: o esporte.

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