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Em entrevista exclusiva, Gwen Berry bate o martelo sobre racismo: "Não podemos resolver um problema que não criamos"


Por Danilo Goes, Luís Fellipe Borges, Mateus Nagime, Wesley Felix

Um dos momentos mais marcantes dos Jogos Pan-Americanos de Lima foi quando Gwen Berry, ouro no lançamento de martelo, abaixou a cabeça e levantou o punho cerrado no topo do pódio para protestar contra o racismo nos Estados Unidos. Ainda cumprindo punição de 12 meses por seu ato, a dona da quinta melhor marca da história reagiu com incredulidade ao Comitê Olímpico e Paralímpico dos EUA (USOPC) apoiar os protestos que surgiram após o assassinato de George Floyd.

Em 25 de maio, um vídeo mostrando um policial branco pressionando o joelho no pescoço de um homem negro viralizou pelo mundo. Tratava-se de George Floyd, morto sufocado covardemente pelo policial Derek Chauvin, em Minneapolis, EUA. As imagens com Floyd dizendo “eu não consigo respirar” causaram indignação e manifestações em quase todos os estados americanos. E agora, as discussões sobre racismo e desigualdade racial precisam, mais do que nunca, serem enfrentadas no mundo esportivo. 

Em entrevista exclusiva ao Surto Olímpico na última sexta-feira (5), a atleta disse ter recebido um pedido de desculpas mas acha não ser suficiente, acreditando que o USOPC está atado ao Comitê Olímpico Internacional (COI). Na conversa, ela também revelou acreditar que interesses financeiros e políticos dominam os principais órgãos do esporte e que essas instituições não estão fazendo o suficiente para auxiliar na inclusão social. 

Berry vê uma diferença na repercussão do caso e tem grande expectativa de que os protestos trarão uma transformação significativa à sociedade, especialmente se representar uma mudança nos políticos e representantes eleitos. "Vamos para as urnas, vamos votar. (...) Se votarmos pela nossa causa, não morreremos", alerta. 

Apesar de acreditar que a Vila Olímpica e os Jogos Olímpicos possam servir de união para a sociedade e sonhar em conquistar o título olímpico, sua fala é de alguém que percebe que os ideais olímpicos estão fora do tom com os problemas encontrados pela sociedade. 

Ela ainda lembrou o início da sua carreira e a relutância em entrar para o lançamento de martelo, respondeu sobre sua experiência nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, onde não se classificou para as finais, contou o que mudou em sua rotina a caminho do ouro em Lima, revelou o maior sonho de sua carreira e deu um recado para os atletas e torcedores brasileiros. Confira os principais trechos:


Briga com o USOPC e luta pelo direito de se expressar


Gwen Berry foi medalhista de ouro no Pan de Lima (Claudio Cruz/ New Services Lima 2019)

"Eles não quiseram me falar as repercussões que terão se eu protestar novamente. Falei com eles no dia 4 de junho porque pensei que eles me deviam uma desculpa e eles se desculparam pela maior parte. Eles reconheceram que a declaração deles foi insensível para a situação ocorrida, mas não retiraram a punição", diz a norte-americana.

"Eu sinto que o que eu quero, eles não podem me dar, porque estão presos a razões políticas impostas pelo Comitê Olímpico Internacional (COI). Eles só conseguem me entregar um 'sinto muito que te magoamos, mas não podemos tirar sua punição e, se você fizer de novo, você terá problemas' porque eles estão presos. Eu sinto que é apenas política, e funciona assim", pontua.

Nesta terça-feira (09), Berry comentou ao Washington Post que são "encorajadores" os comentários de Sarah Hirshland, diretora do USOPC, ao anunciar a criação de um grupo composto e liderado por esportistas com o intuito de "desafiar as regras e sistemas de nossa própria organização que criam barreiras ao progresso, incluindo o direito de protestar". 

A lançadora de martelo ainda enxerga hipocrisia na atitude do COI e da USOPC em celebrar ativistas do passado e, ao mesmo tempo, punir os que agem de forma similar, lembrando do caso de Tommie Smith e John Carlos que também cerraram o punho no pódio dos 200 metros rasos nos Jogos Olímpicos da Cidade do México. A World Athletics postou a imagem deles com a hashtag Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) no Instagram recentemente. Berry acredita, no entanto, que a entidade máxima do atletismo mundial  nunca teve problemas quanto à questão.

Gwen lembra ainda que "tanto no Comitê Olímpico e Paralímpico Americano (USOPC) quanto no Comitê Olímpico Internacional (COI), a maioria das pessoas que está no comando são brancas. Logo, grande parte dos dirigentes tendem a ter atitudes racistas, justamente devido ao racismo estrutural presente na sociedade, já que pessoas brancas em geral são ensinadas a serem racistas". 

Em meio a uma discussão em que brancos não têm “lugar de fala” em causas negras, mas ocupam a maior parte dos postos de liderança em todas as áreas do mundo esportivo, incluindo o jornalismo, Berry fala não somente em conscientização, mas destaca que os brancos devem assumir a culpa na criação e perpetuação do racismo, afinal foi algo criado pela visão branca e pelas ações de brancos.

"Como elas podem falar, ou entender ou serem honestos para a situação que vivemos todos os dias? Eles não vivenciam as situações que nós enfrentamos no dia-a-dia, e, mesmo assim, nos lideram. É impossível, como isso acontece? É necessário que haja pessoas negras nos comitês, nas diretorias e nos conselhos, para que realmente sejamos representados. Precisa ter pessoas negras falando para pessoas negras, não pessoas brancas falando para pessoas que eles não têm nenhuma ideia e que eles não conseguem se reconhecer. Eles não têm nenhuma ideia do que significa ser nós neste mundo. Este é o primeiro passo. Os órgãos governamentais devem procurar maneiras de ouvir nossa voz, de forma pacífica, é claro. Esse é o nosso objetivo, precisamos nos unir pacificamente. Por isso, acredito que os Jogos Olímpicos serão uma boa oportunidade de propagar essa ideia, mas é preciso que todos os órgãos envolvidos se aliem a essa causa, todos os países precisam se unir. Sei que isso não é pedir muito diante de tudo que está acontecendo", declara.

Ponto de virada







We are BLACK LADIES!..... We build .... We don’t tear down other BLACK LADIES .... We have felt the pain of being torn down and we have have decided we will be deliberate about building others! If I didn’t tag you please don’t be offended. I tried to pick people I thought would do this challenge!! All too often, we LADIES find it easier to criticize each other, instead of building each other up. With all the negativity going around let’s do something positive!!🌸Upload 1 picture of yourself...ONLY you. Then tag as many SISTERS to do the same. Let’s build ourselves up, instead of tearing ourselves down. 💜💜COPY AND PASTE💜💜 If I tagged you, don’t disappoint me!! Thank you @lilmissblackdiva @shotdiva @sherri.onaaa for challenging me. #usOrElse#colinkapernick #georgefloyd #byanymeansnecessary 📸: @signed_jefferyherron
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Em relação aos protestos, Berry acredita se tratar de um ponto de virada na luta contra o racismo. "Ao contrário do que acontecia antigamente, não falamos apenas de conscientização, mas existe um movimento para mudar efetivamente. A mensagem é: 'isso é o que está acontecendo com a gente, estão matando a gente, vamos para as urnas, vamos votar, vamos tirar dinheiro da polícia, vamos colocar dinheiro nas organizações que estão lutando contra a injustiça social na comunidade negra'".

Ela diz estar muito atuante na comunidade negra e local. "Precisamos colocar estes juízes e policiais para fora das nossas comunidades, essa é a primeira coisa. Também tenho anunciado as datas em que as urnas estarão abertas para as votações estaduais e locais, encorajando as pessoas a se registrarem para votar. Tenho ido nos protestos e lembrado que precisamos votar pela causa negra. Se votarmos pela nossa causa, não morreremos. A nível local e estadual isso é muito importante para nós”, relata. Nos EUA, a votação pode ser feita antecipadamente e nela inclui a eleição de muitos funcionários públicos das localidades, como delegados, e leis estaduais.

Para um painel de jornalistas brancos, ela lembra: "Tenho tentado trazer a consciência para pessoas brancas, dizendo que é o problema delas. Eles têm que se auto-educar também. Estamos cansados de dizer a estas pessoas o que eles estão fazendo, eles têm que entender que é problema deles e eles precisam resolver isso. Nós não podemos resolver um problema que não criamos. Tenho estado muito atuante em mídias sociais sobre isso. Participando de várias reuniões espalhando a palavra".

Porém, ela admite que precisa voltar aos treinamentos já que não está lutando só por si. "Estou lutando pela minha família e ser atleta é meu trabalho, estou exausta. Preciso descansar e preciso me levantar e me preparar para Tóquio", revelando que o título olímpico é seu maior sonho na carreira.

Ela diz que não estava se sentindo muito saudável quando a pandemia de Covid-19 estourou em março deste ano nos EUA, país que já conta com mais de dois milhões de casos e 114 mil mortos. Sem treinar desde então, foi abalada pelo assassinato de George Floyd pouco depois de voltar ao campo, o que a fez diminuir o ritmo. Apesar disso, revela que não estava saudável.

"Não vou mentir, eu sei que não estava totalmente preparada como no ano passado. Por algum motivo meu corpo não estava respondendo tão bem. Por isso, o adiamento dos Jogos de fato me deu um tempo importante para focar na parte física e na minha técnica de lançamento. Não estou com raiva da Covid", brinca.


Esporte como ferramenta de inclusão social

Berry é um dos maiores nomes do esporte e da causa contra a discriminação racial nos EUA(AP Photo/Shizuo Kambayashi)
Apesar de estar engajada nas discussões sobre racismo, Berry se vê reticente quanto ao papel das principais instituições esportivas de terem um impacto na sociedade. 

"O esporte está muito voltado para os interesses econômicos de investidores e diretores, e isso torna difícil que se lute contra as injustiças sociais e o racismo estrutural. As pessoas colocam o dinheiro no esporte e querem o retorno financeiro disso, sem aplicar esses investimentos em medidas que impeçam o sistema de ferir quem ele fere. Acredito que o esporte deve fazer mais do que nunca fez para combater a opressão, e sei que isso é possível devido a todo o investimento que é colocado nele, mas não tem nenhum dinheiro que é investido na comunidade".

Ela lembra algumas ferramentas de inclusão social, como a da Federação Americana de Atletismo (US Track & Field) e a da Nike, mas acha muito pouco perto do que pode ser feito. Perguntada a respeito de se os Jogos Olímpicos de Tóquio podem ser um palco para unir os atletas e para transmitir uma mensagem de igualdade, ela concorda com essa possibilidade. 

"Essa é uma excelente ideia. As Olimpíadas serão a oportunidade perfeita de unir as pessoas, porque todo o mundo tem presenciado a luta da comunidade negra contra o sistema opressivo e racista nos EUA. Na grande maioria dos países ocorreram protestos, ocorreram um tipo de manifestação para dizer que eles nos apoiam. Nem que seja com algo pequeno, como uma faixa colocada nos uniformes ou nas bolsas, um painel nos ginásios. A Vila Olímpica e os Jogos Olímpicos podem com certeza ser um local de união de todos e tudo".


Começo no beisebol e encontro com o martelo

A trajetória de Berry é uma mostra de como o sistema norte-americano é o principal aliado do país no sucesso multiesportivo. A atleta se destacou no colégio, local em que foi descobrindo as várias modalidades do atletismo, e acabou recrutada para a faculdade, onde se formou em Psicologia e Justiça Criminal pela Southern Illinois University, em Carbondale, Illinois. 

"Meu começo não teve nada a ver com lançamento. Quando eu era criança, eu jogava beisebol e às vezes futebol, mas beisebol sempre foi meu esporte favorito. Fui pro atletismo quando estava no segundo ano do ensino médio, eu era do salto triplo e não lançava nada. Quando fui recrutada na faculdade, o técnico de lançamento disse que eu parecia alguém que ele já havia treinado e queria que eu tentasse, mas demorou um ano para ele me convencer a ir pro martelo. Eventualmente decidi tentar, experimentei e em três meses quase entrei para o time olímpico juvenil e aí percebemos que era provavelmente o meu chamado. Eu fazia arremesso de peso quando estava na universidade, não faço mais", declarou.

Na seletiva olímpica norte-americana de 2016, Gwen Berry marcou presença no Team USA pela primeira vez em uma competição importante ao lançar o martelo a 73,09m. Nos Jogos Olímpicos do Rio, ela não conseguiu repetiu o desempenho e terminou em 14º lugar, com a melhor marca de 69.90m, mesma classificação obtida no Mundial de Atletismo de Londres em 2017. 

"Eu acho que as minhas Olimpíadas foram piores do que eu esperava. Acho que eu poderia estar melhor preparada e pelo menos chegar à final. Mas sendo minha primeira competição importante no time principal, apenas aceitei. Chorei minhas lágrimas e segui em frente. Definitivamente fiquei chateada porque não fiz o que eu queria", revela, sendo só elogios para sua vinda ao Rio de Janeiro. "Amei! Foi uma experiência muito boa porque o Brasil é um país que parece real, as pessoas são muito calorosas, me receberam muito bem e foi uma experiência ótima para mim estar aí", comenta.







Cheers to one of the happiest years of my life. This past year was the year of reconstruction and elevation; I was able to finally Be ME..... In regards to Track and Field: Season 2019 I gave myself two options: Either I was going to walk away from this sport forever or I was going to make a change (a decision in which I was extremely proud of).I fell back in love with my crazy event and I truly began to be a “ hammer thrower “.. I was able to learn an indescribable amount of skills ... I was able to learn from other perspectives.. able to hear amazing stories..and finally able to be FREE (in and out of the ring) I found my POWER and more importantly my PURPOSE ..2019 was about transitioning, understanding and actually moving forward. Recognizing the true reasons of my past failures and working to make them my biggest threats. No excuses In regards to life; I was able to take a stand. I STAND FOR Those who sometimes feel like they are lost, misunderstood, and unheard. Others, who are so emotionally withdrawn that they fail to even try. Poverty stricken neighborhoods..children with no education or guidance these are things I see nearly every day. Inequality..a word that can be clearly defined but easily ignored in the exact same instance. Gun violence, lack of equal opportunity and justice .. these are the issues I stand for. And I am happy I was able to voice that because it is a true issue. Finally: would like to thank my team (MR Matt and Mrs Gail; Youri, Heidi Johnson, Amber Campbell, ) for taking a risk on me and unselfishly uncoiling all of the emotional, physical , and mental damage I came with. They encouraged me,stuck by me, and didn’t make it about ego. Instead they made everything about me. And they did it without needing any credit or recognition. Thank you to Coach Will and Coach Brek for being kind and helping me with my training. I am so happy they are in my corner. To my dearest friends, family, supporters, and current sponsors I appreciate and love you all. I AM STILL ELIGIBLE to compete in this years upcoming Olympic Games.. and I’m coming .. and I will continue to stand for what is right !!! #olympics Tokyo 2020 let’s get it !!!
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Sua marca de 77,78m alcançada no Desafio do Martelo em Chorzów (POL), no dia 8 de junho de 2018, foi recorde continental na época - pertence desde 27 de julho de 2019 a sua compatriota DeAnna Price com 78,24m - e ainda é a quinta melhor marca da história. A boa forma de Berry continuou no ano passado, ao lançar o martelo a 74,62m e faturar a medalha de ouro em Lima.

"O Pan foi divertido. Estava frio, e acho que ninguém estava preparado para enfrentar aquele frio (risos). Mas eu amei o estádio, a torcida, a comida e como os Jogos foram acolhedores e organizados. Gostei bastante de toda a experiência", comentou, revelando ainda o que a levou a crescer tanto no esporte nos últimos anos. 

"Acredito que os pontos mais importantes para mim foram ficar disciplinada e diligente e mudar algumas coisas que eu estava fazendo antes. Tentei manter meu corpo saudável e minha mente livre de qualquer estresse, para garantir que eu sempre competisse com o melhor das minhas habilidades".

Ao final da conversa, Berry deixou uma mensagem para os atletas e torcedores brasileiros, encorajando que a luta global pelo fim do racismo e de injustiças encontre palco no nosso país.

"Sigam lutando, com a cabeça erguida, e não tenham medo de se posicionar a favor daquilo que acreditam, defendem e daquilo que os representa, porque vale a pena. Espero ver vocês em breve nos Jogos Olímpicos e em outras competições. Se me encontrarem, podem falar comigo!"

Fotos em ordem: AP Photo/Rebecca Blackwell;

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