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OPINIÃO: A LGBTfobia no esporte incomoda quem?



Como mulher e fã de esporte, ver o futebol feminino alcançando patamares inéditos no país é um sonho. A cada ano, a sensação é a de que a modalidade vem dando passos importantes na direção do espaço que merece ocupar, com maior visibilidade, incentivo e investimento. E aí entra o ‘Princípio Peter Parker’: com grandes poderes vêm grandes responsabilidades.

No último domingo o nosso futebol feminino teve a sua primeira grande chance de lidar de forma exemplar com uma polêmica LGBTfóbica - com uma pitada de intolerância religiosa - causada por uma de suas atletas, mas falhou. Afinal de contas, a LGBTfobia incomoda quem?

O ambiente esportivo é historicamente hostil aos LGBTs, isso nós já sabemos, mas o futebol feminino oferece um pequeno respiro ao redor do mundo. É uma das modalidades esportivas em que mais se vê atletas e treinadoras abertamente lésbicas e bissexuais, que não só são ‘assumidas’, como o termo popular diz, mas se posicionam e lutam pela visibilidade de sua orientação sexual.

Um levantamento feito pelo Outsports, site especializado em conteúdo esportivo LBGT, estimou que, na última Copa do Mundo de futebol feminino (2019), 40 participantes, entre atletas e treinadoras, eram mulheres lésbicas ou bissexuais. E nem precisamos ir muito longe em busca de referências, já que os maiores nomes da modalidade no país estão entre elas, como Marta, Cristiane e Pia Sundhage, a treinadora da seleção brasileira.

Mas, mesmo nesse cenário favorável, às vezes ‘a bolha estoura’. Foi o que aconteceu ontem, quando um comentário preconceituoso da atleta Chú Santos, atacante do Palmeiras e da seleção brasileira, veio à tona. Em uma publicação do Facebook que fazia um paralelo da morte de Irmão Lázaro e do comediante Paulo Gustavo, ambos vítimas da Covid-19, a atleta comenta que “a diferença entre os dois é que Lázaro vai para o céu e Paulo Gustavo para o inferno’.

Rapidamente, a imagem se espalhou pelas redes sociais e, junto com isso, se espalhou também a expectativa de que a atleta seria minimamente responsabilizada. Infelizmente, em diversas ocasiões esperamos, e uma atrás da outra essa responsabilização não veio.

Primeiro, esperamos da própria Chú que, ao ver a repercussão, entendesse a gravidade de seu comentário, que não é apenas insensível, mas também duplamente criminoso. Homofobia e intolerância religiosa não devem, nunca, ser tratados como ‘opinião’. Em vez disso, recebemos um vídeo com pedido de desculpas em um tom quase debochado e a já conhecida máxima “desculpa se vocês se ofenderam com meus comentários”. Claramente, a LGBTfobia não incomoda Chú nem um pouco.

Depois, esperamos que o Palmeiras lidasse com o caso com seriedade e se posicionasse de forma sóbria, além de punir a atleta de forma adequada, obviamente. Importante ressaltar que aqui não estou falando de demissão e ‘cancelamento’, não acredito que é esse o caminho. O que a minha vida como mulher lésbica iria melhorar acabando com a carreira de uma atleta? Porém, existem diversas maneiras de se responsabilizar alguém sem que o objetivo seja destruí-la por vingança. Mas isso também não aconteceu.

O clube se calou o dia inteiro e, no início da noite, soltou um comentário oficial sobre o caso por meio de tweet preguiçoso e negligente com a resposta que, de tão repetida, já virou clichê: ‘lidamos com o caso internamente’. Nem precisou usar todos os 280 caracteres disponíveis na rede social. Poucos minutos depois do ‘posicionamento’, Chú estava entre as titulares no jogo disputado contra o Corinthians.

Foto: Reprodução/Twitter

O assunto foi tratado internamente e a atleta orientada para adequação do seu comportamento, mas o que isso de fato significa na prática? Qual foi a orientação passada pelo Palmeiras? O clube entende a seriedade do acontecimento? O que impede que isso volte a acontecer, agora que sabemos que não há repercussões? Um posicionamento vazio dessa natureza mais deixa perguntas do que respostas.

O que me veio à mente foi a icônica frase de Dewey, personagem da série 'Malcolm in the Middle' (sucesso no início dos anos 2000): “eu não espero nada e ainda assim me decepciono”. Mas, infelizmente, nesse caso, eu ainda esperava.

No final das contas, o que realmente aconteceu foi a mais clara representação da luta pelas causas LGBT no Brasil. Manifestações de repúdio às declarações de Chú e apoio às pessoas homoafetivas partiram das próprias jogadoras, que usaram suas redes sociais para comentar o caso. Marta, Andressa Alves, Tamires, Cristiane e até as jogadoras do Corinthians antes do jogo foram as porta-vozes da luta pela igualdade que esperávamos das instituições responsáveis. É um claro exemplo do ‘nós por nós’, porque aparentemente, somos nós os incomodados e incomodadas pela LGBTfobia.

Foto: Reprodução/Band


A luta pela visibilidade lésbica e bissexual nada mais é que a luta pelo direito de existir, independente da esfera social. Não adianta lutarmos pela visibilidade do futebol feminino de manhã e excluirmos as mulheres LGBT à noite. Se quisermos que o esporte, sobretudo o esporte feminino, seja igualitário e alcance novos públicos, não podemos tratá-lo como algo separado da sociedade, que pode funcionar sob suas próprias regras. Erros e percalços acontecem, mas precisam ser tratados, no mínimo, com seriedade. Atletas não deveriam ter passe livre baseado em sua habilidade com a bola, sobretudo aquelas que vestem a camisa da nossa seleção nacional. Não são essas as representantes que nosso futebol quer e merece.

À medida que cresce a visibilidade do esporte feminino, mais essas mulheres são colocadas em evidência. Por isso, pessoas públicas devem, ainda mais, ter consciência de que seus posicionamentos têm peso, e devem ser cobradas sim por eles. Chú não estava falando apenas sobre Paulo Gustavo, estava falando sobre os milhões de LGBT amantes do esporte, sobre suas adversárias e suas colegas de time, sobre mim, e, talvez, sobre você.

Lembremos sempre das mulheres LGBT que lutam pela valorização do futebol feminino. Lembremos do princípio Peter Parker.

Ontem o futebol feminino brasileiro teve sua primeira grande oportunidade de dar exemplo na luta pela inclusão e falhou, mas seguimos esperando que na próxima consigamos acertar. A LGBTfobia no esporte deve incomodar a todos nós.


Foto: Reprodução/Istoé

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