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Parada das Nações Tóquio 2020 - Afeganistão

Introdução histórica


República Islâmica do Afeganistão teve uma história turbulenta durante o século XX, com impacto direto nos Jogos Olímpicos. O país conta com uma mistura de grupos étnicos, e a maioria é Pachtun, pouco mais de 40% da população, nome de uma das línguas oficiais do país. A outra língua, dari, também conhecida como persa afegã, é a língua franca em Cabul e a mais usada pelo governo.


Localizado entre os impérios britânico e russo, o país conseguiu manter certa neutralidade até o início do século XX ainda que o Reino Unido exercesse controle sobre a política externa. A Primeira Guerra Mundial acelerou o desejo nacionalista, culminando no Tratado Anglo-Afegão assinado em 19 de agosto de 1919, que criou o Estado do Afeganistão. Aos poucos, o país saiu do isolamento internacional e reformas foram implementadas, abolindo a escravidão em 1923 e garantindo a inclusão de mulheres nas escolas e o fim do uso mandatório da burca.


Mohammed Zahir Shah reinou entre 1933 e 1973, estando a frente de um programa de modernização do Estado, em especial durante o governo do seu primo Mohammd Daoud Khan, primeiro-ministro entre 1953 e 1963, que implementou vários programas sociais e uma aproximação à União Soviética. Em 1973, enquanto o rei estava na Itália por problemas de saúde, Daoudh Khan liderou um golpe pacífico e aboliu a monarquia, assumindo como o primeiro Presidente da República do Afeganistão.


Durante os anos 1970, o Afeganistão era um ponto estratégico da chamada trilha hippie, trajeto que muitos turistas ocidentais faziam da Europa até a Índia ou Sudeste Asiático de “mochilão”. Visitantes eram atraídos tanto pelas paisagens e modo de vida local, como pelo consumo desenfreado de ópio, maconha e outras drogas ilícitas encontradas nos campos do país, gerando uma insatisfação por parte da população.


Aqui a história começa a ficar mais complicada: o governo passou a se distanciar das potências internacionais e em 27 e 28 de abril de 1978 acontece a Revolução de Saur (nome do segundo mês do ano no calendário persa). Ao contrário de cinco anos antes, esta foi violenta e Daoud Khan e seus aliados foram executados, estabelecendo a República Democrática do Afeganistão, alinhada a Moscou.

O país, majoritariamente muçulmano, passou a ser ateísta e as homens foram forçados a cortar suas longas barbas e as mulheres proibidas de usar o xador; foram estabelecidas a reforma agrária e a igualdade de gêneros, com a participação feminina na política. Enquanto algumas cidades acolheram bem as reformas, a maior parte da população foi contra e uma série de disputas internas – incluindo assassinatos e golpes – levava a experiência comunista ao fracasso.

Com o intuito de proteger o governo aliado, a URSS invadiu o país em 24 de dezembro de 1979 e matou o presidente Hafizullah Amin, que por sua vez era acusado de milhares de mortes durante seus 20 meses de poder. A ocupação durou dez anos até que o exército vermelho abandonou o país em 1989, no que ficou conhecido como o “Vietnã Soviético” e contribuiu com a derrocada do bloco poucos meses mais tarde.

Durante o confronto, os EUA aumentam o auxílio das forças anti-comunistas, conhecidos como mujahidins, que teriam forte apoio dos vizinhos paquistaneses e sauditas e viriam a originar alguns anos mais tarde o Talibã.

A partir de 1980, a história política do Afeganistão teve inluência direta nos Jogos Olímpicos, então vamos dar uma pausa no texto e contar dos primeiro anos do Afeganistão.

Mohammad Ebrahimmi, maior atleta afegão do século XX,  cou em quinto lugar no wrestling em Tóquio 1964 - Foto: Reprodução

Uma história olímpica de boicotes e sanções no século XX

A primeira participação olímpica do país foi em Berlim 1936, com dois atletas do atletismo em o time de hóquei sobre a grama, que empatou com a Dinamarca mas perdeu para a Alemanha e foi eliminado. 


A maior delegação afegã na história foi para Londres 1948, com a classificação até hoje inédita de dois esportes coletivos masculinos: a seleção de hóquei conseguiu uma vitória sobre os EUA por 2 a 0, um empate contra a Suíça por 1 a 1 mas com a derrota por 8 a 0 para a Grã-Bretanha, terminou em oitavo lugar. Já o time de futebol foi eliminado na estreia para Luxemburgo, por sonoros 6 a 0.


Após uma ausência em 1952, o time de hóquei foi o único representante do país em Melbourne 1956, na que seria a última participação da equipe em Olimpíadas. Enfrentando rivais do mesmo continente, perderam para Índia e Singapura, mas arrancaram nova vitória contra os EUA para encerrar a campanha. Em 1960, o país esteve em Roma com cinco atletas do atletismo e sete das lutas , sem qualquer vitória ou passagem de fase. 

Cinco atletas da luta livre e três da luta greco-romana estiveram em Tóquio 1964, naquela que foi a primeira chance de medalha para o Afeganistão. Em um formato diferente do atual, em que atletas lutavam entre si e eram eliminados ao alcançarem um determinado número de pontos negativos até sobrar os três medalhistas, Mohammad Ebrahimmi, na categoria de 62kg da luta livre, venceu dois confrontos e ao perder dois confrontos por decisão do árbitro terminou em quinto lugar.


Em 1968, ele voltou aos Jogos, mas não venceu nenhuma luta na Cidade do México. Apenas lutadores afegãos estiveram em 1968 e em Munique 1972, mas sem entrarem no top10 de suas categorias. O país não participou dos Jogos de Montreal 1976.


Voltamos agora à 1980. Em março, o presidente norte-americano Jimmy Carter fez uso de uma política de isolamento internacional contra a União Soviética, que receberia os Jogos de Moscou. Sofrendo pressão interna por conta do sequestro da embaixada em Teerã, ele aproveitou-se da invasão ao Afeganistão como pretexto, liderando um boicote de 65 países.


Os três boxeadores e oito lutadores da delegação afegã ficaram longe da briga por medalhas, mas foram tratados como heróis pela imprensa soviética e viraram os queridinhos do público, como você pode ver na entrada da delegação afegã ao Estádio Lenin, na Parada das Nações:



Em 1984, o Afeganistão se juntou ao boicote soviético e não enviou atletas a Los Angeles. Cinco afegãos competiram na luta livre em Seul 1988, mas nenhum passou da terceira rodada. Com a saída dos soviéticos de seu território, a guerra civil se intensificou a partir de 1989 e o país não enviou atletas para Barcelona 1992.


Em meio ao caos, dois atletas foram para Atlanta, em julho de 1996: o boxeador Mohammad Jawid Aman foi desqualificado ao atrasar-se para a pesagem e o corredor Abdul Baser Wasiqui teve uma lesão no pé antes da corrida, mas ainda assim demonstrou um incrível espírito olímpico e competiu na maratona, terminando em 4 horas, 24 minutos e 17 segundos, uma hora e 25 minutos depois do penúltimo colocado, quando funcionários já estavam organizando o estádio para a cerimônia de encerramento.


Em setembro de 1996, o Talibã tomou controle de Cabul e instituiu o Emirado Islâmico do Afeganistão, reconhecido apenas por quatro países vizinhos. A prática de esportes passou a ser dificultada, quando não era sumariamente proibida: estádios eram usados para encontros políticos e execuções. Ginásios não podiam ter janelas. Não só mulheres precisavam usar burca completa, mas homens foram proibidos de cortar suas barbas; três boxeadores do país foram proibidos de competir em  Karachi, Paquistão, pelo porte de barbas, que ia contra as regras do esporte. Futeboleiros do Paquistão foram presos pela polícia religiosa em uma cidade afegã e tiveram seus cabelos raspados por usar bermudas durante um jogo de futebol.

Em 1999, o Afeganistão foi finalmente suspenso do COI e banido de Sidney 2000 pela discriminação contra as mulheres e imposições à prática de esportes. Apesar disso, houve uma tentativa de enviar atletas de forma independente, mas o Comitê Olímpico do Talibã se opôs a que qualquer atleta fosse sem representar a bandeira do regime. Cientes da importância da participação olímpica nas ambições diplomáticas do país, tentaram a todos custos que a bandeira talibã fosse hasteada no Estádio Olímpico de Sidney, mas o COI resistiu.

Robina Muqimyar foi pioneira no olimpismo afegão ao competir em Atenas 2004 e como Robina Jalali é uma das principais políticas do país - foto: Facebook CON Afeganistão


Século XXI traz frágil estabilidade e medalha olímpica inédita ao país


Com a invasão dos EUA e aliados em 2001 e o estabelecimento de Hamid Karzai como presidente do Afeganistão (2001-14), o país voltou à esfera internacional, ainda que a guerra civil persistia de modo reduzido, e foi finalmente readmitido pelo COI em 2002. Hoje, o Comitê Olímpico do Afeganistão conta com uma Vice Presidente para o Setor de Mulheres, em busca do crescimento da participação feminina no país.


Assim como em 1980, o Afeganistão foi um dos países mais aplaudidos na cerimônia de abertura de Atenas 2004, com uma equipe composta de cinco atletas para o retorno ao palco olímpico. Pela primeira vez, mulheres afegães competiram: a corredora Robina Muqimyar, que estabeleceu novo recorde nacional nos 100m livre (14s14) e a judoca Friba Razayee.


Muqimyar virou um importante símbolo para a participação feminina não só no esporte, mas em todas esferas da sociedade afegã e disputou uma vaga no parlamento nacional em 2010, com o nome de Robina Jalali, mas não foi eleita. Em 2019, concorreu novamente, desta vez com sucesso e é uma das parlamentares representando a capital Cabul. Além de ser congressista, Jalali é a atual Vice-Presidente do Comitê Olímpico do Afeganistão, e foi eleita em janeiro de 2020 para chefiar a Federação Nacional de Atletismo.


Em Pequim 2008, novamente cinco atletas representaram o Afeganistão, mas ameaças de morte para as duas mulheres da equipe fizeram com que a corredora de meiofundo Mehboba Ahdyar escapasse do CT na Itália e pedisse asilo político na Noruega, abandonando o sonho olímpico.


A polêmica ficou em segundo plano durante os Jogos: o taekwondista Rohullah Nikpai levou a medalha de bronze dentre os 58kg ao vencer o campeão mundial Juan Antonio Ramos, da Espanha, na disputa final. Recebido como um herói em Cabul, ganhou casa, carro e outros mimos do governo que viram no atleta um bom embaixador para o país conhecido pelas suas guerras e instabilidade política. Nikpai foi medalhista de bronze no Mundial de 2011 e conseguiu uma segunda medalha em Londres 2012, desta vez nos 68kg. ao vencer o local Martin Stamper na disputa do bronze. É até hoje o único medalhista olímpico de seu país.


Outro nome importante do esporte afegão é o de Nesar Ahmad Bahave, vice-campeão mundial em 2007, também no taekwondo e medalhista de prata nos Jogos Asiáticos de 2010. Porta-bandeira do país em 2008 e 2012, disputou a medalha de bronze nos 80kg em Londres, mas com uma lesão séria na perna não foi páreo para o italiano Mauro Sarmiento e terminou em quinto lugar, sendo levado para o hospital ao fim do confronto.

Apenas três atletas estiveram na Rio 2016, dois corredores e o judoca Mohammad Tawfiq Bakshi, que carregou a bandeira na abertura e perdeu na estreia para o português Jorge Fonseca. Nos 100m rasos do atletismo participaram Abdul Wahab Zahiri, entre os homens, e Kamia Yousufi, entre as mulheres, que correu com um hijab cobrindo todo seu corpo (exceto mãos e rosto) e estabeleceu novo recorde nacional feminino, completando a disputa em 14s02.

Rohullah Nikpai foi o responsável por levar a bandeira afegã ao pódio olímpico em 2008 e em 2012 - Foto: The Khaama Press News Agency


Modalidades


+ Esportes não-olímpicos

Talvez por azar e certamente pelos meandros da política esportiva, os principais esportes do Afeganistão não constam no programa olímpico. Além do taekwondo, incluído apenas em 2000, o caratê, outra arte marcial em que o país obtém sucessos modestos na região terá participação única em Tóquio 2020, com baixíssimo número de vagas disponíveis.

Na última edição dos Jogos Asiáticos, em Jacarta/Palembang 2018, o país faturou bronze no Wushu (conhecido como Kung Fu) e Kurash, tradicionais e populares esportes asiáticos que buscam inclusão no programa olímpico, dominado por modalidades europeias. O país também é sede de uma das dez melhores seleções nacionais de críquete do mundo.


+ Taekwondo

É o esporte olímpico mais popular do país. Esporte marcial mais praticado no Afeganistão, responsável pelos maiores feitos na história esportiva do país, com as medalhas olímpicas de Rohullah Nikpai e o vice-campeonato mundial de Nesar Ahmad Bahave.

Nikpai conta em uma vídeobiografia (clique aqui para assistir) que descobriu o esporte através dos filmes de artes marciais. O esporte era tão popular entre os afegãos que foi criada uma Seleção Nacional dos Refugiados Afegãos em um campo de refugiados localizado no Irã, onde ele viveu com sua família durante muitos anos da guerra civil.


Destaques

Mohsen Rezaee (taekwondo): Está na posição 68 no ranking mundial e 103 no ranking olímpico, devendo representar o Afeganistão no pré-olímpico continental, ainda sem data e local confirmados. Em novembro em 2019, ele venceu um torneio internacional da China, e apesar de não ser um dos favoritos, pode surpreender e garantir a vaga olímpica.

Shafiga Mogul (caratê): A carateca afegã está beirando o top-100 no ranking olímpico dos 61kg e, embora não deva se classificar, pode receber um convite da Comissão Tripartite para Tóquio. Com apenas dez atletas garantidos por categoria, o caminho para a medalha é mais fácil que a classificação

Said Gilani (atletismo): Estabeleceu recorde pessoal de 11s13 nos 100m rasos do Mundial de Atletismo de 2017, competição em que foi o único representante de seu país, feito também alcançado no Mundial de 2019, em Doha. Com 24 anos, vive na Alemanha e compete pelo SV Werder Bremen.


Hamid Rahmi (natação): o objetivo do país que nunca hasteou a bandeira num centro aquático olímpico é enviar três nadadores para Tóquio, sendo dois homens e uma mulher. Para tanto, enviaram pela primeira vez em 2017 dois atletas a um Mundial de Natação. Rahmi foi um deles e repetiu o feito em 2019. Ele participou das provas olímpicas de 50m e 100m nado livre e de 50m peito (não-olímpica). Em outubro de 2020, foi eleito vicepresidente da Federação Afegã de Natação. Não confundir com um boxeador profissional homônimo afegão que mora na Alemanha.

Said Gilani também compete no decatlo por seu clube alemão, mas se concentra nos 100m rasos para o salto olímpico - Foto: Werner Bremen



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