O dia 19 de setembro poderia muito bem ser feriado na República Tcheca ou considerado o Dia Nacional do Atletismo no país: foi nesta data, em 1922, que dois dos maiores nomes do atletismo tchecoslovaco nasceram. Ou tal data comemorativa deveria ser o dia 24 de julho, quando, em 1952, ambos levaram o título olímpico com poucos minutos de diferença?
Voltemos àquele setembro de 1922, por um instante: Em Kopřivnice, vinha ao mundo Emil Zátopek e cerca de 60km distante mas ainda na região da Morávia, na cidade de Fryštáte, nascia Dana Ingrová.
Zátopek descobriu o atletismo aos 18 anos, por insistência de um técnico que o selecionou para correr, apesar dele tentar fugir ao máximo alegando ser fraco e estar doente. Não adiantou e ele foi obrigado a correr. Chegando em segundo, passou a se apaixonar pelo esporte. A Segunda Guerra Mundial o afastou das pistas e ele se formou na academia militar de Hranice, e participou dos últimos meses de conflito. Sua primeira corrida internacional foi em Berlim, em 1946, e já veio uma vitória.
Os treinamentos após 1946 tornaram-se conhecidos, já que Zátopek, aproveitava as piores condições para estar mais preparado. Ele treinava com pesos no pé, usava roupas molhadas para correr e corria com botas pesadas e de preferência na neve e chuva. "É melhor treinar sob más condições, já que dá um tremendo alívio numa corrida", dizia o atleta que era conhecido por "Locomotiva Humana", mas também pelo apelido carinhoso de Ťopek.
Nas Olimpíadas de Londres 1948, ele não só levou o ouro nos 10.000 metros rasos e a prata nos 5.000 metros, como começou um relacionamento com a colega de profissão, Dana Ingrová, que terminou em sétimo lugar no lançamento de dardo. Eles já se conheciam, mas se aproximaram mais durante os Jogos Olímpicos e ele comprou duas alianças de ouro de uma loja na Piccadilly Circus. "Então, nós nascemos no mesmo dia. E se, sem querer, a gente se casasse no mesmo dia?".
Dois meses depois, em 24 de outubro de 1948 os dois se casaram na cidade de Uherské Hradiště, também na Morávia.
"Fiquei surpresa ao ver como ele vivia intensamente para isso, o que ele estava preparado para sacrificar", declarou alguns anos depois Dana, agora usando Zátopková como sobrenome. "Mas quando eu vi os seus sucessos, eu percebi "é isso!". Após o casamento, os dois seguiram juntos rumo a um sucesso, sendo o casal dourado do atletismo mundial. Enquanto ela o chamava de Ťopek, seu apelido carinhoso, ele a chamava de Danuska, Dušinko (minha pequena alma) e as vezes Macku, o equivalente a "querida".
O lar dos dois em Praga era visitado regularmente por amigos e colegas. O britânico Gordon Pirie, um dos maiores rivais de Zátopek descreveu como "uma das mais alegres e felizes casas que já estive". Em 1966, o australiano Ron Clarke hospedou-se com o casal quando esteve em Praga para uma corrida e foi presenteado por Emil por uma medalha olímpica de ouro, que lhe escapava. Alguns biógrafos consideram que o apoio do casal teria sido fundamental também para que Olga Fikotová, do lançamento de disco, conseguisse as permissões necessárias para se casar com o norte-americano Harold Connolly, do arremesso de peso, por quem se apaixonou durante as Olimpíadas de Melbourne, em 1956.
O ápice profissional do casal veio nos Jogos Olímpicos de Helsinque 1952. Na prova que tradicionalmente abre o atletismo, os 10.000m rasos, Zátopek sagrou-se bicampeão olímpico com direito a recorde, no dia 20 de julho. No dia 24, ele recuperou-se brilhantemente na última volta e saiu de um quarto lugar para o primeiro e levou o ouro nos 5.000 metros rasos. Uma hora depois, Dana Zátopková conseguiu sua medalha de ouro, estabelecendo novo recorde olímpico no lançamento de dardo já na primeira tentativa.
Em sua coletiva de imprensa, Emil brincou comentando que sua vitória poucos minutos antes teria inspirado a esposa no ouro. Dana argumentou, com humor e firmeza: "Ah, é? Então, tudo bem, vai inspirar uma outra garota e vê se ela consegue lançar um dardo cinquenta metros". Emil disse depois a medalha de ouro de Dana "me deixa mais feliz do que todas as outras" e Richard Askwith, seu biógrafo, aposta que a declaração é genuína.
No dia 27, a "locomotiva humana" decidiu, de última hora, participar da maratona pela primeira vez em sua vida. Venceu. A estratégia do tcheco foi correr ao lado do recordista mundial Jim Peters. Após os primeiros quinze quilômetros, a lenda diz que Zátopek surpreendeu o britânico ao perguntar o que ele achava da corrida e teria ouvido um "muito lenta" e o tcheco decidiu correr mais ainda. Peters não aguentou o ritmo e desistiu e Ťopek abriu dois minutos de vantagem diante do argentino Reinaldo Gorno e levou na maratona seu terceiro ouro de 1952 e quarto no total.
Dana ainda foi campeã europeia em 1958 e estabeleceu um recorde mundial aos 35 anos (55.73 metros no lançamento de dardo), a mulher mais velha a estabelecer tal marca em um evento ao ar livre na época. Ela levou a medalha de prata em Roma 1960, enquanto seu esposo não conseguiu novas medalhas ou resultados de destaque.
Os dois tinham forte influência na política do país, especialmente após a Primavera de Praga de 1968 que trouxe um ar mais democrático ao Partido Comunista. Com o fim do levante e a repressão que se seguiu, Zátopek foi expulso do partido e do exército, e foi lhe dado um emprego manual. Não só isso, poucas empresas estavam dispostas a contratá-lo e ele teve que se mudar para a região de Boêmia, no extremo ocidente do país.
Apenas em 1977, após cinco anos afastado de sua esposa que seguia vivendo em Praga, o Partido Comunista permitiu que o multicampeão olímpico voltasse para a capital trabalhando na União Tcheca de Educação Física, monitorando publicações internacionais a respeito de novas tendências na ciência esportiva, onde ele se aposentou no início da década de 1980. Já Dana seguiu ligada ao esporte após se aposentar em 1962, virando treinadora. Entre 1960 e 1972 ela foi membra da Comissão das Mulheres da então Federação Internacional de Atletismo, a IAAF.
Apesar do ostracismo oficial, Zátopek levou em 1976 o Troféu Fair Play Mundial Pierre de Coubertin por seu feito em 1952 - diferente da Medalha Olímpica Pierre de Coubertin. Os dois viveram o suficiente para terem seu prestígio reinstaurado internamente e em 9 de março de 1990, Zátopek foi oficialmente reabilitado pelo Governo da então Tchecoslováquia, liderado por Václav Havel.
Ele faleceu no dia 22 de novembro de 2000 em Praga, aos 78 anos, e ela em 13 de março de 2020, aos 97 anos, mas a história do casal dourado continua a inspirar atletas pelo mundo tanto pelas glórias olímpicas quanto pelo relacionamento amoroso de 52 anos.
Morreu nesta sexta-feira (13) Dana Zatopkova 🇨🇿, aos 97 anos. A campeã Olímpica do Dardo em Helsinque 1952 era esposa do lendário Emil Zatopek 🇨🇿, a locomotiva humana, detentor de 4 ouros olímpicos.
— Surto Olímpico (@SurtoOlimpico) March 13, 2020
Bem humorado, era assim que Zatopek fazia as suas assinaturas 🤣🤣 pic.twitter.com/quyFKsSLgh
*Matéria publicada originalmente em 13 de junho de 2020 como "Surto História: Conheça Emil Zátopek e Dana Zátopková, companheiros de vida e glória olímpica", com poucas alterações.
Fotos: Divulgação / Comitê Olímpico Tcheco
1 Comentários
Excelente matéria.
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