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Grande Desafio de Vôlei: 40 anos de uma loucura coletiva

Reprodução da reportagem da revista Placar sobre o Grande Desafio de Vôlei
Fotos: Ignacio Ferreira e Rodolpho Machado/Abril

*Por Felipe Santos Souza, criador da Série 'Jogos Olímpicos na TV brasileira', publicados em 2021 aqui no Surto Olímpico 



Sabe-se que em sua carreira vitoriosa de 51 anos como narrador, Luciano do Valle (1947-2014) divulgou várias modalidades: do hóquei ao boxe, do futebol feminino ao basquete. Sabe-se mais ainda que nenhuma modalidade deve tanto ao paulista de Campinas quanto o vôlei, de cuja evolução Luciano foi um verdadeiro arauto.

E aquele que foi, talvez, o capítulo mais marcante da longa ligação que uniu Luciano do Valle – ou melhor, “Luciano do Vôlei”, apelido popular nos anos 1980 – às quadras completa 40 anos: o Grande Desafio de Vôlei, façanha que colocou uma quadra no gramado do Maracanã, em 26 de julho de 1983, na qual as seleções masculinas de Brasil e União Soviética jogaram, diante de 95.887 pagantes nas arquibancadas do estádio – o maior público de um jogo de vôlei a céu aberto no mundo, ainda hoje.

Era o ponto alto de um pensamento que tomara Luciano de assalto havia alguns anos. E que o fazia minimizar o conceito comum de ter “descoberto” o vôlei brasileiro, como ele revelou ao programa Bola da Vez, da ESPN, em 2013: “Quero deixar bem claro – muita gente às vezes interpreta mal: eu não inventei o vôlei. O vôlei estava maduro, com esse time que teve. E eu descobri esse time, quando foi vice-campeão mundial juvenil no México [em 1981, com nomes como Xandó e Bernardinho]. Ora, se o time é vice-campeão mundial no México, com todas as feras dos outros países presentes, esse time só tende a crescer”.

Cresceu, de fato, ao mesclar a geração que chegava (Xandó, Bernardinho, Renan, Montanaro) com nomes já experientes das participações do Brasil nos torneios olímpicos de Montreal-1976 e Moscou-1980 (Fernandão, Bernard, William). Simultaneamente, em 1981, Luciano criou a PromoAção, empresa divulgadora de eventos esportivos – vá lá, de “marketing esportivo”, mesmo que o termo não existisse à época -, ao lado dos empresários José Francisco Coelho Leal, o “Quico”, e José Cocco. Por meio dessa empresa, Luciano já teve alguns espaços para o vôlei ainda como narrador da TV Globo. Como o Sul-Americano feminino daquele ano, cuja decisão na cidade paulista de Santo André, com a vitória do Brasil sobre o Peru, lotou o ginásio e fez algumas pessoas notarem que algo acontecia.



(Ponto final de Brasil 3 sets a 2 no Peru, final do Sul-Americano de Vôlei Feminino de 1981, na transmissão da TV Globo, com a narração de Luciano do Valle e as reportagens de Roberto Cabrini. Postado no YouTube por Robson Ferrera)



Por meio dos eventos que a PromoAção já organizava, Luciano desejava mais espaço para o então chamado “esporte amador” na televisão. Mas notou que não teria isso na TV Globo, cuja grade de programação era mais fixa e cujos patrocinadores já tinham contratos assegurados. Então, negociou com outras emissoras. Achou o espaço desejado na TV Record, aberto por Silvio Luiz, principal locutor e diretor de esportes da emissora paulista naquela época. E para ela foi, em agosto de 1982, um mês após o fim da Copa do Mundo de futebol que narrara pela TV Globo.

Luciano já estreou na Record narrando vôlei, por sinal: em 28 de agosto de 1982, deu voz à partida entre Brasil e Argentina (Brasil 3 sets a 0), no Ginásio do Ibirapuera, pelo Mundialito de Vôlei Feminino. O Japão venceu aquele Mundialito. Mas a seleção brasileira de mulheres – com Jacqueline, Isabel (1960-2022) e Vera Mossa despontando como destaques – causou boa impressão. E já preparou terreno para o que viria naquele segundo semestre de 1982, com o vôlei masculino.

(Ponto final de Brasil 3 sets a 0 na Argentina, jogo de abertura do Mundialito de Vôlei Feminino de 1982, na transmissão da TV Record, com a narração de Luciano do Valle. Exibido no especial “Record 50 anos”, de 2003. Postado no YouTube por Fábio Marckezini)

Primeiro, em setembro: o Mundialito de Vôlei Masculino, com jogos sediados no Maracanãzinho lotado, fez a Record ter bons números de audiência em Rio de Janeiro (onde estava voltando, com o canal 9) e São Paulo, com partidas exibidas em regra após Sétimo Sentido, novela das 20h da TV Globo naqueles tempos. Aquele Mundialito apresentou ao Brasil aquela que seria para sempre conhecida como a “Geração de Prata”. Nas transmissões, Luciano inovava ao chamar Paulo Sevciuc, o professor “Paulo Russo”, técnico do Brasil nos torneios olímpicos masculinos de vôlei em Munique-1972 e Moscou-1980, para ser o comentarista preferencial das partidas. Marcava os lances de destaque com sonoplastias criativas: cada saque “Jornada nas Estrelas” de Bernard trazia um som de foguete decolando, cada saque “Viagem ao Fundo do Mar” de Renan trazia um som de submarino.

Luciano do Valle e Paulo Russo, a dupla da TV Record que esteve na vitória do Brasil no Mundialito de Vôlei Masculino em 1982
Foto: Ignácio Ferreira/Abril



A vitória apoteótica do Brasil na final daquele Mundialito – 3 sets a 2, de virada, na União Soviética, enlouquecendo o Maracanãzinho – foi um relativo ânimo para um país que andava machucado no aspecto esportivo, após a traumática derrota na Copa do Mundo de futebol, meses antes. Mais do que isso: foi um sinal de como Luciano do Valle tinha acertado, por meio da PromoAção, ao apostar no vôlei. A prova definitiva viria na transmissão exclusiva do Mundial de Vôlei Masculino, na Argentina, em outubro. Com um trio estabilizado nas transmissões dos jogos do Brasil – Luciano do Valle narrando, Paulo Russo comentando, Eli Coimbra (1942-1998) reportando -, a Record se credenciou de vez como uma das novidades esportivas mais elogiadas da televisão brasileira em 1982. E o Brasil descobria uma nova paixão: o vôlei, que voltou com um honroso vice-campeonato, derrotado pela União Soviética na final.

(Abertura da transmissão de Brasil 3 sets a 0 no Iraque, em 3 de outubro de 1982, pelo Mundial de Vôlei Masculino, na TV Record, com a narração de Luciano do Valle. Exibido no especial “Record 50 anos”, de 2003. Postado no YouTube por Fábio Marckezini)



Luciano do Valle estava cada vez mais à vontade nas quadras. Pelo acordo com a CBV (Confederação Brasileira de Vôlei), tinha a exclusividade das transmissões do Campeonato Brasileiro de Vôlei – o que, obviamente, tinha o atrativo da rivalidade entre a Pirelli – paulista, com William, Amauri etc. – e a Atlântica-Boavista – carioca, com Bernard. E a exclusividade das transmissões dos jogos da Seleção Brasileira masculina. Com isso, começava a pensar em promover amistosos e eventos. Como uma série de três amistosos, em julho de 1983, repetindo a final do Mundial do ano anterior entre Brasil e União Soviética. Com o primeiro amistoso sendo... no Maracanã. Não o Maracanãzinho, ginásio que sediava habitualmente os jogos. Mas o Estádio Mário Filho.

Ideia tida, Luciano foi falar com os parceiros na direção da PromoAção. E tanto José Francisco “Quico” Leal quanto José Cocco foram unânimes: o locutor tinha enlouquecido. De todo modo, decidiram apoiá-lo. Do dinheiro, cuidaram os habituais patrocinadores das transmissões dos eventos da PromoAção na Record: bicicletas Caloi, cigarros Marlboro, Banco Econômico (hoje extinto), e tênis Rainha. Da estrutura, cuidou a Rohr, conhecida marca de obras tubulares, consultada por Luciano. E dos convites, cuidou Paulo Russo, ainda imerso no ambiente do vôlei – e muito amigo do treinador soviético, Viacheslav Platonov (1939-2005).

A direção do Maracanã contestava a iniciativa, por temer o desgaste do gramado que já sofria com os vários jogos de futebol. Todos os veículos das Organizações Globo (TV Globo, O Globo, Rádio Globo) boicotavam implicitamente o evento, pelo rompimento de Luciano do Valle no ano anterior. De todo modo, o Grande Desafio de Vôlei foi confirmado para 19 de julho de 1983. Ingressos vendidos, nomes “vips” confirmados – de Emerson Fittipaldi a Antônio Carlos de Almeida Braga, o Braguinha, (1926-2021), banqueiro que investira pesado na formação do time da Atlântica-Boavista -... estava tudo pronto.

Aí choveu. Como não costuma chover no Rio de Janeiro em julho. Choveu pesado. E o jogo foi adiado, transformando o jogo do Maracanã no último daquela melhor de três.

Só restou à Rohr e à equipe da PromoAção retirarem toda a estrutura – tablado da quadra, rede etc. – a tempo para que Flamengo 4x1 Volta Redonda (Campeonato Carioca) fosse jogado no Maracanã, em 23 de julho de 1983. Enquanto isso, a sequência de amistosos entre Brasil e União Soviética foi acontecendo, em ginásios: a União Soviética começou vencendo no Ibirapuera, em 21 de julho de 1983 (3 sets a 1), o Brasil compensou vencendo no dia seguinte, no Geraldão, no Recife (3 sets a 2). E no Maracanã, quando liberada, a Rohr voltou às montagens. E a PromoAção, ajudando, trabalhava ansiosa para que tudo desse certo. Sob um lema, brincalhão e preocupado: “É proibido chover”.

Chegou o 26 de julho de 1983. Com um céu de nuvens ameaçadoras, Carlos Arthur Nuzman, então presidente da CBV, informava a todos que o jogo aconteceria. A TV Record estava com sua equipe tradicional de vôlei a postos: Luciano do Valle para narrar, Paulo Russo para comentar, Juarez Soares (1941-2019) e Eli Coimbra para reportar. Já no Maracanã, as conversas preocupadas nos bastidores continuavam. Bem como a... chuva. Que ia e vinha do Rio de Janeiro. Dividindo-se entre a narração e a organização, Luciano do Valle estava uma pilha de nervos. Mas até nisso brincava: a certa altura, indo falar com Mário Marcos Girello, o “Maraco”, tradicional auxiliar dos eventos da PromoAção, o narrador repetiu imperativo – era proibido falar que iria chover. “Maraco”, então, cochichou: “Tudo bem. Mas que tem alguns pingos caindo, tem...”


Tanto tinham, que só o começo do Grande Desafio de Vôlei foi adiado em 35 minutos. Empolgados com a realização, brasileiros e soviéticos ajudaram até a secar a quadra, com panos e rodos. E a partida começou, com a transmissão da Record. Só que a chuva voltou, ainda no primeiro set. Do lado soviético, nomes estelares como Aleksandr Savin e Vyacheslav Zaytsev (1952-2023) tentavam compensar tirando os tênis para jogarem de meias na quadra molhada, armada no meio do gramado. Os brasileiros copiaram a medida. Mas não adiantou: partida suspensa.

(Compacto de Brasil 3 sets a 1 na União Soviética, o Grande Desafio de Vôlei, na transmissão da TV Record, com a narração de Luciano do Valle, os comentários de Paulo Russo e as reportagens de Eli Coimbra e Juarez Soares. Postado no YouTube por Edu Cesar)



Os minutos foram passando. A torcida que lotava o Maracanã começou a temer a suspensão definitiva da partida – e aí, sabe-se lá quando ela seria realizada (até porque a PromoAção organizava também o Sul-Americano de Vôlei Feminino, a começar no dia seguinte). Chegou-se a mobilizar Emerson Fittipaldi, para o que seria o anúncio da suspensão e o pedido para que se deixasse o Maracanã. Aí veio a ideia salvadora. Uns dizem que ela veio de Viacheslav Platonov. O jogador brasileiro Rui foi enfático, falando à TV Record em 2014: ouviu a ideia sair da boca do jogador soviético Pavel Selivanov.

O importante foi a sugestão: havia tapetes de lã, circundando a quadra e até conduzindo as escadas dos vestiários do Maracanã até a quadra. Por quê não usá-los, então, para cobrir o piso, com os médicos das duas delegações cedendo esparadrapos para que as linhas de três fossem traçadas? Paulo Russo relatou isso, na transmissão da TV Record. O Grande Desafio de Vôlei estava salvo. Até pela mobilização dos jogadores. Incluindo os soviéticos. Zaytsev foi firme, por exemplo: “O que fazer? Não sei. Mas temos de jogar”.

Já perto da meia-noite de 27 de julho de 1983, a partida recomeçou. Não se sabia quanto ela duraria. Técnico brasileiro, Bebeto de Freitas (1950-2018) perguntava a Carlos Arthur Nuzman quanto duraria o jogo: “Um set, dois sets?”. Nuzman desconversou: “Não, não sei... vai jogando, depois a gente vê”. E a madrugada começou com quatro sets sendo jogados. E o Brasil fechando para uma vitória consagradora, por tudo que cercara aquela partida: 3 sets a 1, com Renan fechando o jogo num bloqueio de cortada de Zaytsev. Bernard deixou isso claro, falando a Eli Coimbra logo após o ponto final: “Nós provamos a essa galera que nos prestigiou que nós temos confiança neles, também, que não os deixaríamos na mão de maneira alguma”.


A vitória foi consagradora para Luciano do Valle, também. Que pôde encerrar a transmissão da TV Record com um discurso emocionado, destinando palavras principalmente às partes que haviam duvidado daquela “loucura coletiva”, como ele se recordou em 2013 – tendo as Organizações Globo como alvo implícito. E deixou claro: “Nós encerramos este primeiro grande desafio. Novos virão. Nós estaremos sempre ao lado do esporte brasileiro. Com chuva, sem chuva, com bondade, com maldade, com o que quer que seja. Nós estaremos, sim. Acredite naquilo que estamos dizendo”.

(O discurso de Luciano do Valle, encerrando a transmissão do Grande Desafio de Vôlei, na TV Record, em 26 de julho de 1983. Postado no YouTube por Edu Cesar)


De fato. O Grande Desafio de Vôlei deixou claro que o projeto do narrador/empresário para o esporte na televisão tinha muita atratividade – e a Bandeirantes cedeu espaço total para a PromoAção, com Luciano chegando em janeiro de 1984. Jogos de vôlei em estádios passaram a ocorrer aqui e ali – a Seleção Brasileira jogaria no Mineirão, em 1985, e muitos anos depois, a fase final da Liga das Nações ocorreu na Arena da Baixada, em 2017.

Tudo porque Luciano do Valle fez algo que, como o narrador Everaldo Marques descreveu naquele Bola da Vez, “já seria loucura se fosse atualmente. Naquela época, então...”. Que bom que foi feito.

Resultado final: Brasil 3 sets a 1 na União Soviética

Maracanã, Rio de Janeiro, 26 de julho de 1983

BRASIL: Bernardinho, William, Montanaro, Bernard, Renan e Xandó. Domingos Maracanã, Fernandão, Badalhoca, Marcus Vinícius, Amauri e Leo começaram no banco. Técnico: Bebeto de Freitas

UNIÃO SOVIÉTICA: Vyacheslav Zaytsev, Pavel Selivanov, Oleg Moliboga, Aleksandr Savin, Yuri Panchenko e Vladimir Shkurikhin. Viktor Sidelnikov, Sergei Grilov, Oleg Smugilev,Viljar Loor e Nikolai Gubelnik começaram no banco. Técnico: Viacheslav Platonov

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