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Surto Opinião: a nota do novo salto de Simone Biles é justa?


Simone Biles é a maior ginasta de todos os tempos. Algumas pessoas podem discordar dessa afirmação e dizer outro nome como Nadia Comaneci, Larissa Latynina ou Vera Caslavska (muita gente não sabe, mas o primeiro 10 da ginástica artística feminina na verdade é dela, nove anos antes de Comaneci impressionar o mundo na Olimpíada de Montreal), mas nenhuma delas teve um nível de dominância no esporte como Biles. Além disso, a ginasta norte-americana desafia os limites da modalidade.

Na época de Latynina a ginástica era mais simples, com elementos menos ousados e mais coreografia. Era o que os aparelhos da época permitiam que as ginastas pudessem executar. A geração de Comaneci, Nellie Kim e Olga Korbut, nos anos 1970, trouxe uma revolução ao esporte, introduzindo elementos que vemoshoje em dia como os duplos mortais no solo e séries com mais acrobacias na trave. Hoje em dia, os aparelhos da ginástica evoluíram. O solo, por exemplo, tem molas que permitem que as ginastas façam saltos mais difíceis.

Para os Jogos Olímpicos de Tóquio 2020, a expectativa é que Simone Biles seja o principal nome da competição. A ginasta é super favorita para ganhar a medalha de ouro por equipes, no individual geral, no salto sobre a mesa, no solo, além de ter chances de ser campeã na trave (onde a imprevisibilidade do aparelho pode equilibrar a final) e com menos chances de medalha nas barras paralelas. Apenas alguns atletas da natação como Katie Ledecky e Caeleb Dressel têm chances de ganhar tantas medalhas quanto Biles. 

Após uma pausa devido à pandemia, a ginasta voltou a competir na última semana, vencendo o US Classic, competição tradicional nos Estados Unidos e que é a primeira de uma série de três torneios que definem a equipe do país nos Jogos Olímpicos. Na competição, Simone apresentou um novo salto: um Yurchenko com dois mortais na posição carpada. Caso ela faça o elemento em Tóquio, o salto receberá seu nome no código de pontuação. Seria o quinto "Biles" da ginástica artística feminina.

A Federação Internacional de Ginástica (FIG) determinou o valor de 6.6 para a dificuldade do salto. Em coletiva após a competição, Simone Biles comentou que ela e seu técnico queriam que a nota fosse pelo menos 6.8, mas que eles não iriam recorrer da decisão do comitê técnico da FIG “porque eles não iriam dar o valor correto”.

A declaração da ginasta relembra a disputa entre ela, a Federação de Ginástica dos Estados Unidos (USAG) e a FIG durante o Mundial de 2019. Na ocasião, a ginasta inscreveu uma nova saída na trave: um duplo mortal com duas piruetas na posição grupada. Nas competições domésticas da USAG, a acrobacia foi avaliada com o valor “I” (que equivale a 0.9 pontos na nota de dificuldade da ginasta). Mas a FIG atribuiu um “H” (0.8 pontos) com o argumento de que outras ginastas poderiam se machucar tentando o elemento apenas pelo valor de dificuldade. Biles não gostou da avaliação da entidade e executou a saída apenas na fase qualificatória para incluir o elemento no código de pontuação com seu sobrenome, fazendo uma saída mais fácil nas finais por equipe, do individual geral e da trave.

O comentário de Simone foi parar no New York Times (NYT), um dos principais jornais dos Estados Unidos. A reportagem deles mostrava a indignação válida da ginasta com a avaliação feita pela FIG. O jornal argumenta que a federação tenta “segurar” as notas de dificuldade de Simone Biles, para evitar que ela ganhe com uma diferença muito grande para as adversárias.

O problema é que a matéria do NYT parece ter sido escrita por alguém que não conhece o esporte. O texto erroneamente fala que o exercício leva o nome da ex-ginasta soviética Natalia Yurchenko (na verdade, Yurchenko é o nome dado para a categoria dos saltos que tem um “rodante” na sua entrada), além de culpar a arbitragem pela nota “baixa” (sendo que quem definiu o valor provisório do elemento foi a própria FIG).


“Nem mesmo a pessoa que dá nome ao salto, a ex-ginasta russa Natalia Yurchenko, tentou o salto em competição” - reportagem do New York Times


Nesta semana, a matéria do jornal norte-ameticano começou a repercutir em veículos de comunicação brasileiros. Alguns deles replicaram alguns erros da reportagem do NYT. Além disso, nos últimos dias surgiram vários comentários nas redes sociais sobre Simone Biles ser proibida de executar os seus saltos ou de que seus movimentos foram banidos do esporte, o que não é verdade.

Comentários nas redes sociais falando que os movimentos de Simone Biles foram banidos e
 que as regras dos Jogos Olímpicos foram mudadas por causa da ginasta

Como um repórter que acompanha fielmente várias competições de ginástica artística (a trabalho e a lazer) e que conhece um pouco sobre o código de pontuação, decidi fazer esse texto para tentar esclarecer sobre o valor do novo salto de Simone Biles e responder se seu valor de dificuldade é justo ou não.

Como funciona o código de pontuação da ginástica artística?

Sou fã de ginástica artística desde criança. Conheci a modalidade nos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004, quando era mais um entre milhões de brasileiros que sintonizaram a tv para ver Daiane dos Santos, campeã mundial do solo no ano anterior, encantar a todos com sua rotina ao som de “Brasileirinho”. 



Naquela final, Daiane executou o exercício mais difícil do solo na ginástica artística feminina até então, o duplo twist esticado, que recebeu seu nome no código de pontuação (o Dos Santos II). Mas ao final da acrobacia, a ginasta acabou pisando fora da área de competição para se equilibrar perdendo décimos importantes. A série recebeu nota 9.375 e deixou Daiane dos Santos na quinta posição (até o momento, melhor resultado do Brasil na ginástica artística feminina em Olimpíadas, ao lado de Flávia Saraiva na trave, na Rio 2016). 

Aquela Olimpíada foi a última disputada sob o sistema antigo de pontuação da ginástica artística, com as notas indo de 0 a 10, após uma série de polêmicas na arbitragem da competição. Desde 2006, a modalidade usa um sistema de pontuação dividido em duas partes: a nota de execução e a nota de dificuldade.

As notas de execução ainda vão de 0 a 10, com os ginastas iniciando o exercício com a nota máxima e os árbitros retirando pontos a cada erro do atleta. Já as notas de dificuldade não tem mais um limite fixo, variando de acordo com os elementos que o ginasta executa na sua apresentação. No Mundial de 2019, Simone Biles foi campeã com o mesmo tipo de erro que Daiane dos Santos cometeu em Atenas. Se o formato atual estivesse em vigor em 2004, a brasileira provavelmente seria uma medalhista olímpica.

Nos últimos anos, cresceu o meu interesse em entender um pouco mais sobre como os árbitros chegam às notas de dificuldade e a partir disso, comecei a estudar o esporte, assistindo vídeos feitos por fãs de ginástica que descrevem todos os elementos da rotina, calculando a nota de dificuldade. Além disso, li várias vezes o código de pontuação da ginástica artística feminina e masculina. A partir do meu aprendizado, compartilho meus pensamentos sobre o salto novo de Simone Biles e se realmente a FIG está tentando conter a grandeza da ginasta. 

As notas de dificuldade

Na ginástica artística, as notas de dificuldade são compostas da seguinte forma: cada elemento tem um valor no código de pontuação, recebendo letras de A a J. Os elementos A valem 0.1, e os valores crescem um décimo a cada letra. O famoso Dos Santos I, o duplo twist carpado, tem valor F no código atual, valendo 0.6 pontos.



Em cada apresentação, são contados os elementos de maior valor (8 no feminino e 10 no masculino), com um limite de certo número de alguns tipos de elementos. No solo feminino, por exemplo, são contadas 3 acrobacias, 3 elementos de dança e 2 opcionais.

Além dos valores dos elementos, os atletas podem ganhar bônus por conectar elementos na série, o que é possível no solo e na barra fixa no masculino e nas barras assimétricas, trave e solo no feminino. No gif abaixo, essa sequência da ginasta brasileira Flávia Saraiva recebe 0.2 de bônus de conexão.


Por último, então, um grupo de quatro obrigatoriedades das séries dos ginastas. Para cada uma delas cumprida, são 0.5 pontos incluídos na nota de partida. 

No caso do salto sobre a mesa, cada um deles tem um valor de dificuldade fixado no código de pontuação. O salto abaixo, por exemplo, é um Yurchenko com dupla pirueta (executado pela brasileira Rebeca Andrade), que tem grau de dificuldade 5.4. 


A FIG sempre faz medidas para tentar melhorar a segurança do esporte. Há vários casos de ginastas que sofreram graves lesões por tentarem elementos de alto grau de dificuldade. Em 1980, Elena Mukhina ficou tetraplégica após executar um “Salto Thomas” (vídeo abaixo). Esse tipo de salto com a chegada em uma “cambalhota” foi banido da ginástica artística em 2017, na última atualização do código de pontuação.

Última ginasta que fez o "Salto Thomas" foi He Xuemei (CHN) na Olimpíada de Barcelona 1992

No salto sobre a mesa feminino, o elemento considerado mais difícil antes do eventual “Biles II”, era o Produnova, apelidado de "salto da morte". Ele consiste em um salto de frente onde a ginasta executa 2 mortais na posição grupada. Apenas a russa Elena Produnova conseguiu executar o salto com boa execução até hoje. Mas como o salto tinha um valor de dificuldade muito alto, algumas ginastas começaram a tentar executá-lo em competição, pois mesmo se caíssem, o valor de dificuldade alto poderia compensar na nota final. Uma ginasta que ficou famosa por tentar o Produnova é Yamilet Peña, da República Dominicana. No Pan de Toronto em 2015, ela conseguiu a prata no salto sobre a mesa, mesmo com uma queda. 

Yamilet Peña (DOM) na final do salto sobre a mesa no Pan de Toronto 2015

Na final da Rio 2016, duas ginastas tentaram o salto na final. A indiana Dipa Karmakar, que ficou em quarto lugar e a uzbeque Oksana Chusovitina, sétima colocada. Para o ciclo olímpico atual, a FIG reduziu o valor do salto de 7.0 para 6.4, fazendo com que o número de ginastas tentando o movimento diminuísse. No Mundial de 2019, apenas Peña executou o Produnova.

Em 2019, a FIG usou o argumento da segurança para definir a nova saída da trave de Simone Biles como um “H”. Mas a USAG tinha dado a letra “I” para o salto nas suas competições nacionais, antes de enviá-lo à apreciação do comitê técnico de ginástica artística feminina da federação. O argumento dos estadunidenses era que como o  Tsukahra grupado - o duplo mortal com uma pirueta - tem valor G, um eventual duplo mortal com uma pirueta e meia seria H, e o duplo mortal com duas piruetas de Simone deveria receber um “I”. O excesso de zelo da federação internacional pode fazer com que algumas ginastas que teriam capacidade de executar o Biles, desistam de tentar, já que talvez compense mais fazer um Tsukahara no lugar. 

O Yurchenko duplo carpado

Em fevereiro de 2020, Simone Biles postou um vídeo nas redes sociais treinando o salto em uma caixa de espuma. Na época, o vídeo causou um frisson entre os fãs de ginástica e teve início a discussão sobre um eventual valor de dificuldade. Alguns trouxeram argumentos usando como base os outros saltos já existentes no feminino, dentre os Yurchenkos. A questão é que este seria o primeiro salto da categoria com dois mortais, então o parâmetro talvez não fosse tão justo.

Então, algumas pessoas recorreram à ginástica artística masculina para fazer sua análise, comparando o Produnova e o Biles I (saltos mais difíceis já presentes no código) e o novo salto com seus equivalentes no masculino. 


Comparando os valores, dá para concluir que o Biles II poderia ter um valor de 0.2 a 0.4 acima do Biles I e do Produnova. O 6.8 seria justo, assim como o 6.6. Um fator a ponderar, por exemplo, é que o Biles II tem mortais para trás, que tem valores de dificuldades mais baixos no código, em comparação com os saltos para a frente. 

Na minha percepção, o problema da pontuação do salto novo é que o código de pontuação tem várias falhas. Assim como o código é falho, ao diminuir a dificuldade do Biles na trave, ele também tem problemas na avaliação do salto. Num mundo ideal, o Produnova não teria tido a redução de valor que teve neste ciclo olímpico, o que permitiria que o Biles II tivesse um valor ainda maior.

E esse é apenas o começo. Muitos fãs da modalidade criticam a falta de originalidade nas rotinas atualmente. Nos Jogos Olímpicos, provavelmente veremos muita coisa parecida: várias ginastas fazendo um duplo carpado para encerrar o solo. Uma enxurrada de Yurchenkos no salto sobre a mesa. O código de pontuação deveria dar mais valor para alguns elementos pouco executados para permitir rotinas diferentes, como a trave de Sanne Wevers, dos Países Baixos, campeã olímpica na Rio 2016 com uma série construída em torno de elementos de dança e completamente original em relação às demais finalistas da prova na última Olimpíada.

Em tempo, para quem acha que Simone Biles está sendo prejudicada, no US Classic seu salto recebeu nota 16.100 (6.6 de dificuldade e 9.5 de execução), a maior da ginástica artística feminina desde 2017, quando o código de pontuação atual entrou em vigor. Biles venceu a competição no individual geral com 58.400 pontos, 1.3 à frente de Jordan Chiles, a segunda colocada (vale lembrar que Simone caiu nas barras assimétricas e no solo, então a vantagem poderia ser 2 pontos maior). Ainda que Simone Biles ache a nota de dificuldade injusta, pelo exposto aqui, creio que o 6.6 é um valor razoável para o salto. 

Foto de capa: Ricardo Bufolin/PanamericaPress/CBG

1 Comentários

  1. Muito bom, concordo com vc. Existem algumas injustiças no solo feminino também, tem várias acrobacias com valor baixo, como tripla pirueta e meia, duplo Twist esticado, e duplo mortal carpado pra frente e por isso não são feitos pelas ginastas pois não vale o risco pelos descontos de execução

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