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Surto Opina - Mais rápido, mais alto, mais forte e mais flexível também


 Por Leonardo Dahi

Quem como eu passou as últimas semanas cobrando o Comitê Olímpico Internacional por um anúncio imediato do adiamento dos Jogos Olímpicos de Tóquio em 2020 jamais, como deu a entender o presidente Thomas Bach nos seus pronunciamentos oficiais, ignorou a complexidade da decisão. Todos nós temos plena consciência da quantidade de gente envolvida em uma decisão como essa e podemos ao menos imaginar a dor de cabeça que um adiamento representa para a entidade na sua relação com patrocinadores e demais parceiros, das TVs ao governo japonês, dos comitês e federações aos turistas.

Também não escapa aos olhos de ninguém, sobretudo daqueles apaixonados pelos Jogos, o peso histórico de se postergar uma Olimpíada. Ninguém jamais imaginou aguardar cinco e não quatro anos para a reunião da elite do esporte mundial. Ninguém queria uma Olimpíada em ano ímpar. Ninguém está satisfeito em, a quatro meses dos Jogos, rasgar todas as contagens regressivas. Sempre foi e sempre será compreensível o esforço dos organizadores para preservar Tóquio 2020 o mais próximo possível do seu planejamento original.

Ainda assim, mesmo com toda essa compreensão, a decisão demorou demais. E, por tabela, seria uma completa sandice aguardar mais quatro semanas por ela, como prometeu Bach dois dias antes de comunicar aquilo que todo mundo já sabia. O cálculo é simples e você, leitor, tanto quanto eu, deve tê-lo feito algumas vezes ao longo dos últimos dias. Eu te dou cinco minutos para que você rabisque aí em uma folha de papel um cenário em que seria possível realizar os Jogos na data original. Vai lá. Eu espero.

Voltou? Nada, não é mesmo? Pois é. Se eu te der ao invés de cinco minutos, cinco horas, dará no mesmo. Cinco dias, idem. Se, assim como Bach, você tiver 24 horas por dia sete dias por semana para encontrar uma saída, ainda assim não encontrará. Portanto, a cobrança pelo adiamento das Olimpíadas não era uma questão de negar a complexidade da medida, mas sim de reconhecer que não havia alternativa possível. Na vida, assim como no esporte, é preciso saber o momento de reconhecer a derrota. É o momento do mundo inteiro, e por tabela do mundo do esporte, se curvar diante de um adversário poderoso e admitir que ele foi capaz de inviabilizar por agora a realização das Olimpíadas.

A imagem do COI sai levemente arranhada (eu diria que neste momento bastante arranhada, mas o tempo há de reparar o estrago) graças à esperança juvenil de que um dia, por milagre, o mundo acordasse livre do coronavírus e as Olimpíadas pudessem continuar o seu curso natural. Insistente, o COI se viu pressionado até não aguentar mais. Atrasado, viu a imprensa e até um de seus membros, o canadense Dick Pound, antecipar o anúncio. Assim, o que era pra ser um anúncio de parar o planeta, virou uma burocracia para confirmar o que todos já sabiam. A ingenuidade fez o COI perder o bonde da história.

E é por isso, pelo bonde da história, que era importante um posicionamento mais rápido. Do ponto de vista logístico, da organização dos Jogos, ter feito o anúncio há 15 dias ou ter segurado ainda mais pelas tais quatro semanas é quase irrelevante. Mas a questão aqui não é essa. A questão é saber interpretar o verdadeiro espírito olímpico, a importância das Olimpíadas para além de uma competição esportiva. 


Em primeiro lugar, por mais óbvio que fosse o adiamento, enquanto ele não fosse oficial os atletas seguiriam de maneira paranoica se preparando para as competições. Não é justo. Não é justo porque a competição não vai acontecer agora e não é justo porque é perigoso. Em nome de uma medalha olímpica, sonho de 100% dos competidores, eles poderiam ignorar recomendações das organizações de saúdes, ficando assim expostos ao contágio e podendo também contaminar outras pessoas. Adiar os Jogos é dar uma ordem imediata para todos os esportistas do mundo: fiquem em casa. Esqueçam os Jogos. Isso não é importante agora. Levantar um saco de 10 quilos de feijão na cozinha para manter a forma física é uma coisa. Treinar acrobacias no sofá da sala de um apartamento minúsculo ou ir pra rua a qualquer custo pra treinar é outra.

E mais importante que isso, até, é passar uma mensagem para o mundo que extrapola o esporte. Mais que a Champions League, a Eurocopa, a NBA, a Disney ou a Torre Eiffel, a Olimpíada adiada é argumento inabalável para quem ainda não está convencido do tamanho do problema que estamos enfrentando. É um choque. É uma pancada. É pra qualquer um cair em si. Mal sabe o COI como foi importante adiar os Jogos horas antes de um chefe de estado convocar rede nacional para dizer que, por ter histórico de atleta, não sofreria grandes consequências caso infectado.

Se o COI aguardasse mais quatro semanas, perderíamos a chance de mostrar que nem mesmo os corpos colossais dos atletas mais fortes do mundo podem correr esse risco. Com a decisão tomada podemos ilustrar o tamanho do problema. Como pode você querer subestimar um evento que é capaz de, depois de 124 anos, mudar o ano de uma Olimpíada?

As Olimpíadas são a reunião dos melhores atletas no mais alto nível. Para isso, todos têm que estar muito bem preparados, o que jamais aconteceria no contexto atual. As Olimpíadas são a celebração da união entre os povos e, portanto, só faz sentido quando o mundo todo está na mesma sintonia. Não faz sentido celebrar o esporte, a vida e a comunhão entre as nações enquanto algumas nações tentam encontrar espaço para enterrar tanta gente que sucumbe à pandemia.

O momento é de muita tristeza, mas também de muita reflexão. Romper com mais de um século de simetria no intervalo entre os Jogos – lembrando que até mesmo as edições canceladas de 1940 e 1944 são contabilizadas como Jogos Olímpicos – dói. É penoso. Mas é o momento de refletir também. E de fazer uma reflexão absolutamente positiva. Tóquio 2020 será em 2021 e será lindo como sempre. Será histórico como sempre. Atletas entrarão no panteão dos imortais, países celebrarão conquistas antes inimagináveis, recordes indestrutíveis irão pelos ares e todos celebraremos o mais puro espírito olímpico. E assim será com cada Mundial, cada competição, de maior ou menor importância, que mudar de data seja por conta da pandemia, seja como consequência da mudança do calendário olímpico.

Vai passar. E quando passar a gente vai descobrir que o que marca o calendário é uma filigrana perto do que representa uma Olimpíada. Quando a chama olímpica for acesa no Novo Estádio Nacional de Tóquio, o lema olímpico merecerá uma justa licença poética: “Mais rápido, mais alto, mais forte e mais flexível também”.

Porque garantir que os Jogos aconteçam em um espírito de paz, harmonia e com o mundo todo livre para celebrar a beleza do esporte sem se preocupar com mais nada é muito mais importante do que brigar com a realidade para garantir, a qualquer custo, um intervalo de quatro anos entre uma edição e outra.

O importante é competir. Quando possível. Agora o importante é ficar em casa. Vai passar.

Fotos: Reuters

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