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Surto História: Shaul Ladany, o homem que sobreviveu ao Holocausto, competiu em Munique 1972 e segue marchando

 



O ano é 1936: a Europa vive à sombra do crescimento nazi-fascista. Era um ano olímpico, tendo Berlim sendo definido como sede em 1931, no crepúsculo da República de Weimar. O que talvez poucos saibam é que naquele mesmo ano um menino nascia na Iugoslávia e após sofrer muito pelo mesmo regime que celebrava as Olimpíadas de 1936, conheceria a glória olímpica também na Alemanha, mas em Munique 1972.


Adolf Hitler decidiu usar o maior evento esportivo do mundo para mostrar a todos a força do terceiro reich e da raça ariana, que segundo os preceitos da ideologia nazista, era a raça pura. Seguindo a mesma lógica, todos aqueles que não pertenciam a ela, eram inimigos da Alemanha.


A propaganda nazista foi muito bem sucedida e o país saiu vitorioso da edição, conquistando o primeiro lugar no quadro de medalhas com trinta e três ouros contra vinte e quatro medalhas douradas dos Estados Unidos, o vice campeão da edição. 


Nesse mesmo ano, no dia 2 de Abril nascia Shaul Ladany, em Belgrado, na então Iugoslávia. Quando tinha apenas cinco anos, os alemães invadiram a Iugoslávia e ele teve sua casa bombardeada, obrigando sua família a se mudar para a Hungria. Porém, seus avós foram capturados e deportados para Auschwitz, onde foram assassinados e segundo Ladany, tiveram seus corpos usados para fazer sabão.


Na Hungria, seus parentes o esconderam em um monastério, onde ele era proibido de dizer que era judeu, o que não evitou que em 1944, ele fosse capturado e enviado para o campo de concentração de Bergen Belsen, localizado no norte da Alemanha, onde ele ficou seis meses.

Memorial às vitimas na entrada do campo de concentração. Foto/ H.Hollemann


Neste campo não haviam câmaras de gás, porém, como em outros campos, a morte rondava o lugar. Milhares de judeus, ciganos e homossexuais foram torturados, passaram fome e adoeciam, devido a má higienização intencionalmente estabelecida no local. Foi neste mesmo local que Anne Frank, um dos maiores símbolos do Holocausto, adoeceu de tifo e morreu com apenas 14 anos.

 

Shaul foi libertado em um acordo feito entre alemães e judeus norte-americanos. Foram prometidos aos alemães dez mil caminhões em troca de cem mil prisioneiros, porém, no momento da libertação, não haviam caminhões disponíveis e os nazistas liberaram apenas 1700 judeus, todos levados para a Suíça, onde viveram como refugiados até o fim da guerra.

 

Em 1948, Shaul parte junto de sua família para o recém criado Estado de Israel, onde viveu sua adolescência. Aos 15 anos, venceu sua primeira prova como atleta de corridas de rua, em uma prova de dez quilômetros. Ao completar 18 anos, obrigatoriamente teve que servir o exército, já que em Israel, o serviço militar é obrigatório para homens e mulheres. Ladany revelou que durante os seus três anos no exército, ouviu que possuía habilidades físicas excepcionais.


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Em 1956, Ladany correu a primeira maratona de Israel, com apenas 10 participantes, porém, não completou a prova, já que não estava bem preparado para uma corrida de 42km. Foi então que no início da década de 1960, já por volta dos 25 anos, ele resolveu sair das maratonas e ir para a marcha atlética, dando inicio a uma linda história.


A sua estreia foi em 1962 e já no ano seguinte conquistou seu primeiro campeonato israelense da modalidade. Ao todo foram 50 marchas percorridas em Israel, sendo que ele conquistou mais 27 vezes o campeonato nacional de marcha atlética. Seu desempenho em campeonatos nacionais era impressionante: além de todos estes títulos em Israel, ele foi campeão seis vezes nos EUA, duas na Bélgica e uma na Suíça e na África do Sul.

 

Shaul nunca teve um técnico, sendo um autodidata no esporte. Muito do que ele aprendeu sobre a modalidade, ele leu no livro "Race Walking" do medalhista de ouro em Berlim-1936, o britânico Harold Whitlock.


Em 1968, o israelense participou da sua primeira olimpíada na Cidade do México, onde sofreu com a altitude. Ele adoeceu com a "vingança de Montezuma", que ocorre quando um turista bebe a água da cidade e sofre com diarreia causada pela bactéria Escerichia coli, que se prolifera em água não tratada. No ano seguinte, disputou as Macabíadas, as olimpíadas judaicas realizadas de 4 em 4 anos em Israel e conquistou o ouro nas distâncias de três, dez e cinquenta quilômetros.


O ano de 1972 é um marco em qualquer história sobre Shaul Lashany, tanto desportivamente quanto em sua história de vida. Era a primeira vez dele na Alemanha, depois de ser prisioneiro no campo de Bergen Belsen, e sua preparação lhe dava confiança após ótimos resultados em competições.


No início daquele ano, ele bateu o recorde mundial da marcha de cinquenta milhas, prova não olímpica, com a marca de 7:44:47 (sete horas, quarenta e quatro minutos e quarenta e sete segundos), pouco depois baixando a marca para 7:23:50, marca que persiste até hoje. Além disso, ainda foi campeão mundial em Lugano, na Suíça, na prova de 100 km em nove horas e trinta e um minutos, em prova realizada já no mês de novembro.


Os jogos de Munique-1972 se realizaram entre o final de agosto e começo de setembro, e sua participação ocorreu no dia 3 de setembro. Durante o aquecimento, Shaul colocou uma estrela de Davi amarela, em alusão a estrela com a inscrição "Jude", que os judeus eram obrigados a usar durante o holocausto. Também no aquecimento, ele foi elogiado por alemães que acompanhavam a prova e os respondeu em alemão. Ao ser questionado sobre como sabia a língua, ele disse que havia aprendido o idioma enquanto estava no campo de concentração.

Foto: Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos


No que ele considerou um erro de estratégia, ele completou a prova em 19º lugar.


"Em Munique, calculei mal minha estratégia ao gastar muita energia nos primeiros 5 e 10 km da corrida e paguei por isso mais tarde quando comecei a desacelerar. Eu não tive o treinamento no local para me ajudar com o ritmo da corrida e também deveria ter me hidratado na marca dos 10km, mas não tomei minha bebida até a marca dos 15km. Olhando agora, eu deveria ter ficado pelo menos em sexto lugar se fizesse a coisa certa." afirmou o atleta em entrevista ao portal Sports History Weekly, realizada em 2020.


O dia seguinte era de folga pra Ladany, porém o dia foi marcado pelo ataque terrorista à delegação israelense na Vila Olímpica. Integrantes do movimento pela libertação da Palestina, o movimento Setembro Negro foi o responsável pelo ataque que culminou na morte de onze atletas israelenses, cinco terroristas e um policial alemão, em uma ação de resgate completamente desastrada.


Os terroristas invadiram os quartos 1 e 3 do andar, achando que o quarto 2 estava vazio, e era justamente neste em que Ladany dormia. Ao ser avisado pelo seu companheiro de quarto que um integrante da delegação foi assassinado no quarto vizinho, Shaul e um companheiro de quarto pularam da janela e conseguiram avisar o técnico americano Bill Bowerman, que chamou a polícia. O israelense afirmou anos depois ainda estar fresco na memória o ataque. "Aquilo está comigo o tempo todo e eu me lembro de cada detalhe", afirmou o israelense em entrevista ao New York Times no aniversário de 20 anos do evento.


Foto: Haim Horenstein/ Ynet News

No ano seguinte, prosseguindo sua carreira, Ladany foi ouro na edição de 1973 das Macabíadas, nas distâncias de 20km e 50km. Seus feitos não pararam por aí: em 1975, ele quebrou o recorde norte-americano da prova de 75km, repetindo a dose no ano seguinte. Shaul passou então a competir em torneios master e em 2006, se tornou o primeiro homem na casa dos 70 anos a completar 100 milhas em menos de 24 horas, completando a distância em 21 horas e 45 minutos.


Hoje em dia, Shaul costuma andar em todos seus aniversários a distância correspondente a sua idade, como fez em 2012 quando marchou 76km no Deserto do Neguev. Sua última corrida foram os 83km completados em 2019, já que não podia sair de casa em 2020 por conta da pandemia.


Foto de capa: Haim Horensein/ Ynet News 

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