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Surto Entrevista - Joanna Maranhão




Por Daniel Barbosa, Mateus Nagime e Regys Silva


A ex-nadadora Joanna Maranhão é um dos nomes mais importantes da natação brasileira dos últimos anos. Quinto lugar nos 400m medley em Atenas 2004, obteve o melhor resultado de uma nadadora brasileira em Olimpíadas, se igualando a Piedade Coutinho em Berlim-1936. Presente em quatro Olimpíadas, Joanna é recordista brasileira e sul-americana de várias provas até hoje, quase dois anos depois de sua aposentadoria das piscinas. E fora delas, sempre foi conhecida por ter uma forte opinião sobre diversos assuntos, sendo muito ativa nas redes sociais.

E nada mais justo, que no dia do internacional da mulher, a gente traga uma entrevista mais do que especial com Joanna, que falou abertamente sobre vários assuntos e não fugiu de nenhuma pergunta, com um relato sincero sobre o abuso sofrido, machismo, assédio, transfobia e muito mais, que você confere na íntegra abaixo:


- Você acredita que o esporte tem o poder de empoderamento na vida de uma mulher?

Eu acho que o esporte tem o poder de empoderar qualquer ser humano, e quando a gente faz esse recorte de gênero entre homens e mulheres, colocam a gente num local que sempre foi dito como muito masculino, tanto que os homens começaram a praticar o esporte antes. Hoje tem mulheres adentrando esse local e revendo essa lógica de que tolerar a dor física e desenvolver essa melhor versão de si dessa modalidade é você agir como homem, porque tem nada a ver com gênero, né? A gente enxerga isso hoje até dentro da natação.

Mulheres toleram muito mais a dor física é dito às vezes: “Ah, a gente treina como homem.”, porque muito se acredita que isso está atrelado a questão de gênero. Acho que o empoderamento dentro do esporte vem muito daí, do nosso corpo sendo moldado pelo nosso objetivo de um campeonato ou algum resultado e aí esse corpo é em prol desse resultado que a mulher quis ter, então ela foge do corpo padrão e ainda assim essa mulher tem orgulho disso. Isso também é uma forma de empoderamento.


- Como o Esporte te ajudou a superar os traumas de abuso? Ou ele ainda assombra? E o que você aconselharia a crianças - e pais - que podem passar pela mesma situação? Como federações podem solucionar o problema?

A natação foi o meu pesadelo e foi a minha catarse, porque tudo aconteceu no mesmo ambiente. Então para mim o mais difícil foi quando eu revivi tudo isso, com a consciência de tudo que eu tinha passado e eu tinha uma escolha: ou era fugir desse ambiente e com as memórias muito negativas à flor da pele ou eu ressignificaria tudo aquilo, que foi o processo que eu escolhi fazer.

Um processo que é muito longo e muito tortuoso porque mexeu comigo enquanto atleta, enquanto mulher, enquanto namorada, enquanto tudo. Eu precisava equilibrar cada um desses locais onde eu estava e ressignificar a natação se tornou o meu maior objetivo, fazer com que aquele ambiente fosse fosse prazeroso para mim de novo.

Paralelamente a isso, eu criei a ONG com meu nome. Comecei a estudar mais sobre o caso e foi uma forma de eu... eu não tinha mais como trazer justiça para o meu caso, porque quando eu trouxe à tona, o crime já tinha prescrito e eu acabei me tornando ré, porque ele me colocou na justiça por calúnia. Um processo que durou 10 anos e ele perdeu. Sempre que ele perdia, recorria e isso durou 10 anos. Ele perdeu em todas as instâncias, mas aí a minha voz, a minha história e esse processo de ressignificação da natação para as pessoas que viviam naquele ambiente, sendo feliz e lutando para melhorar o meu tempo de 4m40s de alguma maneira eu dava força para outras pessoas e ressignificava a minha a minha própria história né?

Então de alguma maneira pude trazer a justiça para mim, podendo trazer justiça para os outros. E a Lei Joanna Maranhão é muito isso para mim né? Eu não fiz, eu não tive condições de denunciar, Porque o crime foi prescrito, mas hoje às vítimas tem. E aí depois da Lei Joanna Maranhão, vem a lei da Escuta Protegida que é super importante, o acolhimento da vítima quando ela vai denunciar quem vai escutar essa história dela, como é que é o acolhimento dessa vida... Isso é super importante também, então são passos que a gente vai dando quando eu vou para escola, escolinhas de natação. Hoje tem um material que produzi junto com o Comitê Olímpico para atletas e técnicos sobre esse assunto, então tudo isso faz com que o fardo do que eu passei se torne mais leve, traz até o significado, sabe? Não de marketing. "Ai, eu tive que passar por isso para ajudar outras pessoas", não é nada disso, mas se foi inevitável que eu passasse por isso, que eu consiga trazer um outro prisma para toda essa situação.

Então é por isso que martelo muito nisso de educação sexual, do diálogo dentro de casa, na escola, na escolinha de esporte. Porque quanto mais a gente fala sobre isso, não é incentivar a sexualidade de uma criança, pelo contrário. A educação sexual é feita de acordo com a faixa etária desde muito cedo com livros educativos, que a criança entenda o corpo dela, que ela saiba diferenciar um toque abusivo de um toque carinhoso, quem que ela pode ir procurar.


- Você sente mais facilidade para as meninas que entram hoje no esporte do que foi na sua época?

Nesse quesito acho que a gente ainda tá na mesma situação. Questão de disparidade salarial ainda é muito grande. Existia na minha época e ainda existe hoje em se tratando da natação. A gente não tem um grupo de mulheres que chegou como foi aquela geração de 2004. A gente nadou muito bem porque foi nosso primeiro Pan-Americano, foi a nossa primeira Olimpíada, então a gente chegou junto enquanto grupo de mulheres, uma dando suporte para a outra. Mas, apesar de ali que foi a única edição dos Jogos Olímpicos da natação em que mulheres tiveram um resultado melhor do que homens, isso não significou uma melhor estrutura para a gente. Tanto os clubes pelos quais a gente representava quanto a Confederação não usaram essa onda de Joanna e Flávia [Delaroli] finalistas, revezamento 4 por 200 finalista, Rebeca [Gusmão] semifinalista. Isso não foi usado para trazer mais meninas, para motivar meninas ou fazer o que a gente recebesse um pouco mais para ser valorizada.

Então foi uma onda que veio, um movimento muito da gente mesmo, que resolveu se unir e se apoiar. A gente sempre conversa sobre isso, o quanto que esse apoio da gente na aclimatação e na Vila foi importante para a gente chegar junto, porque estávamos todas inseguras. Eram os primeiros Jogos Olímpicos de todas ali, então a gente se juntou e aprendeu a ficar feliz umas pelas outras, quebrar essa lógica de que mulheres são rivais de outras mulheres e, nossa... Foi um movimento muito genuíno mas que não se transformou em estrutura para a natação feminina.

Então hoje porque a gente vê um exponente que é visto como um talento, que é visto como um prodígio, aí recebe um pouco mais, mas isso não significa uma mudança completa ou uma visão estrutural do que que a natação feminina precisa para mudar. Então nessa lógica, da gente continuar vivendo de uma ou outra mulher que chega ali, tem um baita resultado e essa mulher tem uma estrutura melhor, mas não todo grupo de mulheres.


- No Brasil o esporte é tratado muitas vezes como algo de meninos ou existem os esportes de meninos (futebol, basquete) e os de meninas (vôlei, handebol). Como fazer para superar isso?

Eu acho que eu falei na primeira pergunta e responde isso. É esse ambiente de força física, de ter que lidar com dor física para passar por cima daquele bloqueio mental. Tudo isso é muito masculino na sociedade. É muito voltado ao “faça como um homem, aja como homem”. Um corpo musculoso é muito ligado ao que é masculino também, então a gente vem quebrando isso, como eu falei ali na primeira pergunta, a gente se empodera e desconstrói essa ideia de que tudo está ligado ao universo masculino, não tá ligado a você tolerar a sua própria dor, a você colocar no objetivo e chegar lá, a você tem a mesma estrutura que um homem para poder atingir a sua meta, então acho que é por aí



- Quais as atletas que foram e são referências para você?

Eu confesso que antes tinha isso na ponta da língua assim, eu já falava nomes de mulheres principalmente, mas hoje entendendo o esporte como eu entendo como uma coisa global que não dá para você fazer esse recorte e olhar simplesmente o resultado que a pessoa tem. Ainda mais num país como o Brasil que a gente tá retrocedendo tanto para gente falar de política pública de esporte, eu tenho dificuldade em escolher um nome assim.

Hoje em dia, quando eu penso, o nome que vem na minha cabeça é Ana Moser, porque pela atleta incrível que ela foi dentro de uma modalidade coletiva e uma das melhores em quadra e isso é unânime. E o que ela tá fazendo no pós-carreira também. Essa mulher que de fato luta por construir um legado esportivo, faz esse coletivo de atletas e essa representatividade. A Fabi, do vôlei, também eu acho incrível, eu acho que são essas duas mulheres que vem aqui na minha cabeça do conjunto, sabe, tanto de resultados incríveis quanto de postura.

Eu sinto muita falta de postura. A gente é muito melindrado enquanto atleta no Brasil, a gente é muito ensinado a “sobe no bloco,  nada e fica calado ou fala somente do teu resultado, quando o resultado não for bom posta algo nada a ver" como se tivéssemos de ter uma imagem de herói o tempo inteiro, de que não falha e eu não gosto disso, eu não identifico com isso e me incomoda bastante.


- Você obteve o melhor resultado da natação feminina do país nos Jogos Olímpicos 16 anos atrás. Não incomoda os resultados ruins da natação olímpica feminina?

É aquilo que eu tava falando, esse resultado de Atenas meu e de todas as meninas do grupo de mulheres que nadou melhor do que a equipe masculina foi uma coisa muito genuína das mulheres se encontrarem, se unirem ali. Eu lembro quando a Flávia foi nadar a final dela, a gente pegou o lençol da Vila e fomos atrás de canetinha e escrevemos “Go Flávia”. A gente só falou para ela "quando eu falar o teu nome, olha para gente", e aí tava aquele lençol gigantesco.

Isso significa muito para ela, e tem esse lençol guardado até hoje. E para a gente também. Eu me lembro da gente sentado lá pintando porque era importante, que ela era todas nós naquela final daqueles 50m livre naquela raia 8.

Então é isso que falta quando uma mulher da natação feminina tem um baita resultado hoje, é aquela mulher porque a gente sabe que é uma pessoa que tem uma estrutura voltada para ela na natação, ou em qualquer outra modalidade aquática. Não existe um coletivo e isso não é culpa das mulheres, isso é uma coisa que tem que vir de cima para baixo: de Comitê Olímpico, Confederação, comissão técnica, que tem uma função primordial de trabalhar esse coletivo. E quem tá dentro da seleção sabe que o que é trabalhado é a individualidade o tempo inteiro. São situações muito ruins para o esporte, que só fomentam esse cada um por si. Então não é culpa quando se fala de resultado ruim da natação feminina, não é culpa dessas meninas que não estão treinando.

A gente treina muito, às vezes eu queria que a imprensa fizesse um tour pelos clubes e acompanhasse para ver como que essas mulheres treinam e treinam muito mais do que muito homem. Então não é treino, é competitividade. Olhando pelo lado técnico as mulheres têm que competir mais fora, porque competir dentro do Brasil e da América do Sul não é uma competição muito forte. No meu caso, os melhores resultados vieram quando eu tinha Georgina (Bardach, argentina bronze em Atenas-2004 nos 400m medley) que era uma das melhores nadadoras dos 400m medley do mundo, competindo comigo o tempo inteiro. Então era uma referência forte que eu tinha ali o tempo inteiro comigo. A grande maioria não tem isso, entendeu? Então tem que se competir mais fora mas essa noção de coletividade, ela tem que ser construída de cima para baixo e não de baixo para cima e isso não existe.



- Como você avalia o posicionamento das mulheres dentro do esportes quanto ao seu espaço, visibilidade e afins?

A gente se posiciona pouco porque o sistema nos ensina a calar. Ele vai tolhendo a gente. Por exemplo, hoje é dia 8 de Março, Dia Internacional da Mulher e você vai ver todas as atletas femininas do Brasil postando alguma coisa sobre o dia da mulher. Agora, se você busca aprofundar esse debate com essas mulheres sobre equidade salarial, vamos falar sobre a realidade do seu esporte, você não vai ter resposta porque é meio aquela pincelada, só uma militância seletiva do dia, entendeu?

Uma coisa que é meio que gerar like. Porque a gente é tolhida disso, porque não é permitido para gente fazer esse debate, se colocar e questionar. Esse espaço não é dado para a gente e quando a gente bate na porta, quer esse lugar e quer falar sobre isso, a gente é histérica é a "cri cri", é a que cria problema então é uma coisa muito do sistema.


- Como você entende a participação de atletas trans ou atletas, que como no caso de Semenya, produzem naturalmente altos níveis de testosterona?

Eu acho que a gente tem que falar duas coisas: ponto um, a participação dessas mulheres está dentro das regras? Da regra de hoje tá dentro da regra, então elas não estão pulando absolutamente nada, certo? Ponto dois, se existe um questionamento, se a ciência ainda não comprovou equidade ou vantagem de mulheres trans após a transição a gente não pode emitir opinião baseado em militância. Eu acho que quem é contra tem que procurar embasamento científico que comprove a vantagem e quem é a favor tem que procurar embasamento científico que comprove a equidade e esse debate tem que ser feito para longe, para muito distante do preconceito transfóbico. E eu digo isso como uma pessoa transfóbica que eu fui por muito tempo, e proferi piadas que na verdade eram violência com essas mulheres. Mas eu acho que a gente tem que ter seriedade nesse debate e o que eu vejo, principalmente do lado da pessoas que são contra, “não é mulher porque tem pênis, não é mulher acabou” e é uma coisa muito mais para acenar para agenda conservadora do que uma vontade de lutar pelas mulheres.


- Você acha que ainda existe muito medo por parte das atletas em enfrentar abusos, assédios ou simplesmente um tratamento diferente em relação aos atletas homens?

Se não é dado para a gente o espaço para falar sobre isso, se a gente, principalmente mulher,  não se enxerga em outro local que não seja como uma atleta mulher, os homens se enxergam em todos os locais. Eles são os dirigentes de alto escalão, de médio escalão, eles são os técnicos, eles são a comissão médica, eles são tudo, eles se veem em todos os lugares. A gente não se vê dentro do alto rendimento, a gente só se vê umas nas outras, e se quando a gente quer falar alguma coisa, é "a histérica" ou "a cri cri", ou tá falando porque quantas vezes dentro da natação uma menina parece com maiô cavado e o comentário no aquecimento é “fulaninha tá nadando com sunkini em uma piscina fechada mas não está nem sol, ela tá querendo”. Quando o homem usa uma sunga mais larga ou mais fina ninguém fala que ele tá querendo absolutamente nada. Então, o corpo da mulher é objetificado o tempo inteiro, meninas mais novas, quando começa aquela reforma do próprio corpo, que aparece com quadril um pouco mais largo é unanimidade o pessoal chegar e dizer: "A fulaninha tá dando".

Então, são coisas que eu ouvi, falaram de mim, falaram de outras meninas e eu calei porque na época achava, “não vou falar nada”. Então são essas pequenas violências que fazem com que a gente silencie em relação a grandes violências. Existe o racismo muito velado também de pessoas que falam as coisas. Acho que tão fazendo piada e eram situações que hoje, voltando para trás, situações em que eu dentro da seleção me silenciei e que eu percebo que esse silêncio era conivência da minha parte, que eu poderia ter falado, mas eu não tinha consciência que eu tenho hoje. Então acho que é por isso que é tão importante a gente falar para as meninas mais novas, porque coisas que a gente escutou e aturou lá atrás hoje a gente não precisa mais aturar. A gente tem que falar, a gente tem que se posicionar e é com muita verbalização e muita conversa que a gente vai chegar nesse lugar.


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Queria agradecer aos leitores por terem chegado até aqui, agradecer a vocês da página por darem tanta visibilidade ao esporte de alto rendimento, ao esporte feminino e às mulheres. Não estamos passando por um céu de brigadeiro no que tange ao esporte brasileiro em termos de estrutura de apoio, mas a gente segue na torcida, segue lutando para que a comunidade se una em prol daquilo que é dela de direito. E os Jogos Olímpicos estão aí na porta e quero pedir que compreendam que todo atleta não vai para uma competição para não ter um resultado bom. A pessoa que mais sofre quando não tem um resultado bom é o próprio atleta, então que a gente tenha compreensão, é uma pressão muito grande e todos os atletas que ali estão lidando com essa pressão interna e externa, eu acho que a hora de acolhimento de torcida e muito apoio, o atleta brasileiro precisa de muito apoio.

fotos: Sátiro Sodré/SS Press/CBDA e Divulgação

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