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Opinião: Há 80 anos o futebol feminino foi proibido no Brasil. E daí?

 

[Imagem: Arquivo/Jornal O Imparcial]

“Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país” 


Esse é um trecho publicado no decreto-lei 3.199 do dia 14 de abril de 1941, exatos 80 anos atrás. Sob o pretexto de que certos esportes não combinavam com a “formação física do belo sexo”, o então presidente Getúlio Vargas proibiu a prática do futebol pelas mulheres. Essa realidade perdurou por quase 40 anos, quando o decreto foi revogado em 1979. E daí?

A realidade do futebol feminino no Brasil a gente já conhece. Não tem incentivo, não tem categoria de base, não tem patrocinadores, não tem salário justo, não tem praticamente nada. É como um esporte-não-esporte. Mas tem muita cobrança, porque para muitos, o esporte “não dá dinheiro”, e por isso não vale a pena investir.

Em sua maioria, as discussões em torno da maior valorização da modalidade giram em torno de um enigma no estilo do ‘ovo e da galinha’. O futebol feminino não cresce porque não tem investimento ou não tem investimento porque não cresce? 

Para mim a resposta é óbvia. Infelizmente não é isso que a gente vê. É muito claro que as consequências da proibição do futebol feminino por mais de quatro décadas sejam sofridas até hoje em diversos aspectos e aqueles que lutam pela maior valorização da modalidade ainda têm um longo caminho a percorrer.

[Imagem: Arquivo/Correio do Paraná, 1959]


Um breve histórico da proibição do futebol feminino. Acredita-se que a primeira partida entre mulheres tenha sido realizada há 100 anos, em 1921. O jogo entre Tremembé e Cantareira foi observado com olhos curiosos, que julgavam aquela disputa como algo, no mínimo, cômico. Por anos, foi inclusive considerado bizarro o suficiente para ser atração de um dos circos mais populares da época.

Mesmo proibido, partidas clandestinas ainda aconteciam, claro. Porém, no período da ditadura as punições ficaram extremamente severas, fazendo com que mulheres fossem presas por conta da prática. Os militares no poder traziam argumentos ‘médicos’ para sustentar a proibição, defendendo que os choques provenientes do contato poderiam levar mulheres a se tornarem inférteis ou serem incapazes de amamentar. Surreal.

E assim seguiu até o final dos anos 70, até a queda definitiva do decreto em 1979. A primeira regulamentação do futebol feminino, porém, só veio em 1983. Para referência temporal, em 1983 a seleção brasileira masculina já era tricampeã da Copa do Mundo.

Não é - ou deveria ser - óbvio que uma repressão severa ao esporte freou bruscamente seu desenvolvimento? 

O futebol feminino dentro de campo ainda é jovem, e os números da categoria de base, principal maneira de formar novos atletas, assustam. Por exemplo, não há nenhum clube atualmente que trabalhe com futebol feminino para atletas de 14 anos ou menos. Essa é uma idade essencial para a formação de qualquer atleta profissional, pois é nesse momento que situações de jogo já começam a ser trabalhadas. 

Fora a carência de clubes, também faltam competições para meninas. O primeiro Brasileirão feminino sub-18 aconteceu em 2019. Três anos atrás. O primeiro campeonato estadual sub-17 foi em 2017.

Um levantamento feito pela FIFA mostra que 15 mil mulheres jogam futebol de maneira organizada no país, com pouco menos de 3 mil sendo profissionais. 475 estão em alguma categoria juvenil - abaixo de 18 anos -. Existem mais árbitros federados (566) do que jogadoras de futebol em categorias de base. 

Para comparação, o país referência em desenvolvimento de mulheres para o futebol - Estados Unidos - acumula cerca de 10 milhões de atletas, sendo 1 milhão e meio menores de 18 anos. Ou seja, somente nas categorias de desenvolvimento, os EUA possuem 100 vezes mais mulheres do que toda a população de atletas de futebol (entre profissionais e amadoras) no nosso país. E alguns acham justo comparar as duas seleções em relação a títulos mundiais. 

A história não muda muito para as profissionais. Os clubes da elite do Campeonato Brasileiro precisam, de forma compulsória, manter equipes de futebol feminino enquanto permanecerem na série A. Porém, como já vimos várias vezes, assim que a equipe é rebaixada o primeiro corte é o do projeto do futebol feminino. O Goiás deu um exemplo dessa prática poucos dias atrás. Fora os incontáveis e tristes casos de golpes, abandono e total negligência com as atletas do futebol.

Mesmo nesse cenário, os dois principais ciclos de cobranças acontecem normalmente a cada 2 anos. O primeiro, em Copas do Mundo, o segundo, em Olimpíadas. Nessas épocas, grande parte das pessoas surgem para colocar nossas atletas sob um microscópio cruel, usando uma suposta “falta de títulos” e inferioridade técnica (quando comparadas com os homens, claro) para justificar o lugar subalterno da modalidade, e depois, esquecem completamente da sua existência.

Como é possível quebrarmos esses ciclos? 

[Foto: Divulgação CBF]

Primeiramente precisamos contar a outra história. A que está bem ali na outra face da moeda, mas é facilmente esquecida. Em vez de pressionar pelas derrotas do esporte, é necessário entender que as conquistas falam muito mais alto nesse cenário extremamente desfavorável.

A Copa do Mundo de futebol feminino teve sua primeira edição em 1991. Foram somente oito edições em pouquíssimo tempo de existência. Em 1999 a seleção brasileira ficou com a terceira colocação e oito anos depois alcançou a medalha de prata. Esse é um feito incrível considerando que 20 anos antes a modalidade sequer era permitida no Brasil. A propósito, Marta ainda é a maior artilheira da história da competição, entre homens e mulheres. Cristiane vem em quinto lugar. 

Já o primeiro torneio olímpico de futebol feminino aconteceu em 1996, tendo somente seis edições até hoje. Nossa seleção esteve entre as quatro primeiras colocações em cinco deles, incluindo duas medalhas de prata (em 2004 e 2008). Esse não é um histórico de se envergonhar. Muito pelo contrário.

[Seleção vice-campeã Olímpica. Foto: AP Photo/Ioannis Androutsopoulos]

Em segundo lugar, precisamos defender o futebol feminino. Com unhas e dentes.

O futebol feminino é ignorado pelo público por ser considerado inferior em relação ao masculino tecnicamente, estruturalmente, e vários outros ‘-mentes’. Ele é visto como um ‘sub-esporte’ que, para muitos, ‘não tem graça’. É difícil dizer que esse argumento da qualidade técnica não tem fundamento, afinal, com investimento para o desenvolvimento de atletas infinitamente menor, de certa forma o esporte é, ainda hoje, iniciante em determinados sentidos. O problema central é que a culpa dessa deficiência é jogada nas costas das próprias mulheres que hoje se desdobram para fazer com que essa modalidade respire, e não nos verdadeiros responsáveis por mantê-lo submerso.

Se o futebol feminino hoje ainda não alcançou lugar estabelecido no grande público, não é por causa das mulheres que se doam em campo, é porque, entre muitas outras coisas, enquanto o futebol jogado por homens crescia exponencialmente e se espalhava pelo mundo, o jogado por mulheres era crime. Ignorar esse fato é desonesto com a história do esporte e das mulheres que a constroem.

Exigir que o futebol feminino esteja em pé de igualdade com o masculino para ao menos reconhecer sua existência e relevância é assistir a um corredor que foi obrigado a largar 80 anos depois e culpá-lo por não conseguir cruzar a linha de chegada ao mesmo tempo.

Por último, é preciso reconhecer, valorizar e acreditar.

Ainda com essa história negativa e todas essas limitações, o futebol feminino vem alcançando patamares inéditos no país. A partir de imposições rígidas, como a obrigatoriedade de categorias femininas para todos os clubes da Série A do Brasileirão, mais mulheres puderam enxergar uma oportunidade de carreira no esporte, algo que era impensável poucos anos atrás.

Os primeiros jogos transmitidos em televisão aberta; o recorde de audiência na Copa do Mundo 2019; a igualdade de pagamento por diária nas seleções. Cada um desses ‘primeiros’ representa degraus essenciais para a construção do futuro do futebol feminino. Cada luta por visibilidade e igualdade hoje importa muito.

Se falamos de proibição de um lado, do outro, falamos de resistência.  Temos que reconhecer os avanços da modalidade no país para valorizar quem resiste e faz parte da história de um esporte que ainda engatinha. 

Há 80 anos o futebol feminino foi proibido no Brasil. E daí? Bom, ‘e daí’ que precisamos entender o futebol feminino pelo que ele é e pelo que ele foi. Isso nunca será apagado.

O futebol feminino é um esporte que ainda não tem 40 anos de existência, construído por mulheres fortes e sonhadoras, que nadam contra a corrente para fazer o que amam e abrir caminho para outras que virão. 

Não compare o futebol feminino com o de outros países e muito menos com o futebol masculino. Essa história é única e, por mais que lamentável, reconhecê-la é o primeiro passo para entender tudo que ainda precisamos fazer para valorizar esse esporte e as mulheres que o praticam.

Não odeie o futebol feminino, abrace a sua história e entenda sua importância. O futebol feminino é gigante. O futebol feminino segue resistindo.


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