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Surto de Vôlei - Com saque de Carol e bloqueio da CBV, a bola cai na quadra da democracia


O duelo entre Ana Patrícia/Rebecca e Ágatha/Duda, duplas que representarão o Brasil nos Jogos Olímpicos de Tóquio em 2021, poderia ter sido a principal notícia da etapa de abertura do Circuito Brasileiro de Vôlei de Praia. O protocolo contra a Covid-19, a chuva no Centro de Desenvolvimento do Voleibol em Saquarema, a torcida virtual: tudo isso também seria pauta.

Porém, nada ou ninguém chamou mais a atenção neste fim de semana que Carol Solberg. A jogadora carioca se valeu de seu direito constitucional à liberdade de expressão e, ao ser entrevistada após conquistar a medalha de bronze ao lado da nova parceira, Talita, exclamou “Fora Bolsonaro” durante transmissão ao vivo do SporTV, canal fechado do Grupo Globo.



Evidentemente, a frase dita por Carol não foi empregada de maneira avulsa, ou impensada, como foi sugerido por muitos. Antes, a atleta já havia comentado sobre os incêndios no Pantanal e na Amazônia e a falta de políticas de prevenção à pandemia de Covid-19. Além disso, sua fala não pode ser tirada do atual contexto de desmantelamento do esporte brasileiro: ao invés de legado olímpico, cortes nos investimentos e no Bolsa Atleta.

Entretanto, o ato de Carol precisa ser visto além do simples âmbito político. O posicionamento da atleta foi impactante e importante para avaliarmos também em que pé está a discussão sobre liberdade de expressão no ambiente esportivo nacional. 

Como toda manifestação de cunho político, o protesto gerou repercussão. Era de se esperar que pessoas que aprovam a gestão do atual Governo criticassem a postura da jogadora - ainda mais neste contexto latente de polaridade ideológica. De fato, as redes sociais se inundaram de mensagens tanto favoráveis, quanto contrárias à Solberg.

Porém, o elemento chocante deste caso foi o posicionamento da Confederação Brasileira de Voleibol (CBV).

A CBV, influenciada pelo patrocinador do evento, afirmou que o protesto “em nada condiz com a atitude ética que os atletas devem sempre zelar”. A entidade chegou a empregar um termo racista em sua nota, afirmando que o gesto de Carol “denegria” a imagem do esporte. Criticada posteriormente pela bicampeã olímpica Fabiana Claudino, a Confederação afirmou “ser contrária a qualquer forma de discriminação”, mas não justificou o uso do verbo “denegrir”.

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Difícil entender o que aconteceu. Vamos por partes. Primeiro, denegrir é uma palavra de cunho racista e JAMAIS deveria ser usado em qualquer situação. Estamos lutando dia após dia contra atos racistas, fazendo campanhas educativas e protestos, então seria ótimo repensar o uso de certos termos. Com isso já deixo a dica de além de denegrir não usem “lista negra”, “mulata”, “mercado negro”, “a coisa tá preta”, “serviço de preto”, entre outras mais. Segundo, vivemos (ainda) em um país DEMOCRÁTICO, em que atletas ou qualquer ser humano pode expressar suas convicções, desde que elas não sejam ofensivas, criminosas ou que faltem com respeito. Temos que ter muito cuidado com a censura ou flerte com a volta dela, precisamos estar atentos aos nossos direitos enquanto cidadãos. Portanto, não foi muito feliz a nota escrita pela CBV. Eu como atleta preta, que muito conquistei e representei esse país em todo mundo, não posso me calar diante das coisas que vejo. Sempre vou apoiar a democracia, as liberdades individuais e especialmente todo apoio a causa contra o racismo estrutural e diário que ainda insistimos em conviver achando “normal”. #blacklivesmatter #vidaspretasimportam #liberdade

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Semelhante repreensão, porém, não foi vista em 2018, quando dois jogadores da seleção masculina de vôlei de quadra, Wallace e Maurício Souza, após partida contra a França válida pelo Campeonato Mundial, veicularam em suas redes sociais fotos em que mostravam os dedos formando o número 17, referindo-se ao então candidato à Presidência da República, Jair Bolsonaro.

Na época, a CBV, que também publicou a foto em seu Instagram, mas apagou posteriormente, disse ser contrária à manifestação política, mas afirmou que “acredita na liberdade de expressão e, por isso, não se permite controlar as redes sociais pessoais dos atletas, componentes das comissões técnicas e funcionários da casa”.

O curioso é que, mesmo que a foto tenha sido publicada nas redes sociais, a imagem exibia a Seleção Brasileira de Vôlei, devidamente uniformizada e patrocinada. Inclusive, nos dois casos, o patrocinador era o mesmo. Wallace chegou a vir a público no ano seguinte e, em entrevista ao blog Saída de Rede, da jornalista Carolina Canossa, afirmou que "se arrependeu de ter feito o gesto com a camisa da seleção".

Com isso, se a CBV repudia tanto as manifestações dos atletas, sanções mais severas deveriam ter sido aplicadas aos dois jogadores. Por mais que, a bem dizer, a Confederação não deveria regular o que dizem os atletas, independente da vertente política que eles apoiam.

Maurício Souza e Wallace, no canto superior esquerdo, fazem referência ao número de campanha de Jair Bolsonaro; foto chegou a ser publicada no Instagram da CBV (Foto: Reprodução/Instagram CBV via Saída de Rede)


A postura demonstra a contradição de uma entidade que tem se mostrado desmoralizada e à mercê de aspectos financeiros. A ausência de um protocolo de retorno às competições de quadra e o conflito com os clubes da Superliga pelo pagamento dos testes de Covid-19 são as demais provas disso.

Para além do âmbito institucional, os próprios atletas não parecem ser unânimes no que tange ao seu próprio direito de se manifestarem. A Comissão dos Atletas da CBV, comandada pelo ex-jogador de vôlei de praia e candidato à vice-presidência do Comitê Olímpico Brasileiro (COB), Emanuel Rêgo, também lamentou a atitude de Carol e afirmou que “lutará ao máximo para que esse tipo de situação não aconteça novamente”.

As respostas contrárias não vieram só da bolha do voleibol. O ex-jogador de futebol Marcelinho Carioca, em postagem nas redes sociais, criticou não apenas Carol Solberg, mas a emissora que transmitia o evento. Para Marcelinho, o protesto da jogadora não teria sido espontâneo, mas, sim, “planejado para atacar o presidente”.

Isso posto, a conclusão a que chegamos, como levantou o jornalista Marcelo Laguna em sua coluna Laguna Olímpico na última segunda-feira (21), é a de que os exemplos internacionais de posicionamentos políticos no ambiente esportivo e de reações a tais manifestações não parecem já ter chegado ao Brasil - e ainda devem demorar a surtir efeito por aqui.

Na NBA, liga norte-americana de basquete, que é independente da USA Basketball (Confederação de Basquetebol dos Estados Unidos), os atletas demonstraram sua força paralisando o torneio mais importante da modalidade como forma de protesto contra o racismo e a violência policial. Manifestações ocorreram também na liga de beisebol (MLB) e na de futebol americano (NFL).


Na Inglaterra, os jogadores da Premier League se ajoelham antes de cada partida, também como forma de protesto. Nomes como Lewis Hamilton, Megan Rapinoe, Gwen Berry, entre vários outros, também se valem de seus papéis como figuras públicas para exporem suas convicções e denunciarem as injustiças e intolerâncias da sociedade global.

O próprio Comitê Olímpico Internacional (COI), antes fechado a qualquer ato de manifestação política nos Jogos Olímpicos por meio da Regra 50, parece ter abrandado sua rigidez. O presidente Thomas Bach afirmou em junho que o COI está em contato com a Comissão dos Atletas para permitir protestos pacíficos já nos Jogos de Tóquio. Sinal dos novos tempos.

Exemplos também existem no Brasil, é claro. Além de Carol Solberg, as atletas do rugby sevens, lideradas por Izzy Cerullo, elogiaram nesta semana o posicionamento da Brasil Rugby de tirar do cargo o novo CEO da entidade, Eric Romano. Isso ocorreu após falas machistas, homofóbicas e gordofóbicas postadas por Romano em suas redes sociais terem repercutido, levando à pressão das atletas e da comunidade da modalidade por seu desligamento, como relatou Demétrio Vecchioli na coluna Olhar Olímpico na terça-feira (22).

Postagens de Izzy Cerullo, do Rugby Sevens, após o afastamento de Eric Romano; outras jogadoras veicularam mensagens semelhantes na sequência (Foto: Reprodução/Instagram izzycerullo)


A rainha Marta, seis vezes melhor jogadora de futebol do planeta e a maior artilheira das Copas do Mundo, também se posicionou publicamente em favor da igualdade entre homens e mulheres no futebol durante a Copa de 2019, na França. 

Fato é que esportistas engajados social e politicamente não são raros no Brasil. Porém, em um país que mal cumpre a homenagem de um minuto de silêncio nos estádios, a expressão pública da opinião por parte dos atletas é vista por muitos como desrespeito. 

Assim como os torcedores tinham o direito de vaiar Dilma Rousseff na abertura da Copa do Mundo de 2014 e de gritar “Fora Temer” na abertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro em 2016 - eventos transmitidos em escala ainda maior que o Circuito Brasileiro de Vôlei de Praia - Carol Solberg se valeu dessa mesma premissa. Afinal, Carol não é só uma atleta. É cidadã de uma democracia.

Frágil, mas ainda democracia.

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Imagem de capa: Reprodução/CBV

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