“São instalações de nível
olímpico”.
"Não tem nada no Brasil
mais controlado e fiscalizado do que o dinheiro destinado para a Copa do Mundo
e para a Olimpíada. O dinheiro público tem de ser controlado".
Cerca de seis anos separam o
nascimento das frases acima. A primeira era recorrente no discurso de Carlos
Arthur Nuzman, presidente do Comitê Olímpico Brasileiro (COB), antes e durante
os Jogos Pan-Americanos de 2007, no Rio de Janeiro. A segunda foi proferida por
Aldo Rebelo, ministro do Esporte, em entrevista ao programa “Roda Viva”, da TV
Cultura, em 8 de abril de 2013. O contexto delas envolve os três grandes
eventos esportivos que o Brasil se comprometeu a organizar em sua história
recente. Elas não servem, no entanto, para ilustrar uma experiência
bem-sucedida, um motivo de orgulho. São, na verdade, um colossal alerta a
respeito do que já foi feito e do que ainda está por vir.
Mais de seis anos se passaram
desde que o Maracanã recebeu, na agradável noite de 29 de julho de 2007, o
encerramento do Pan. Mas o que o esporte brasileiro recebeu em troca? Qual o
legado, para usar o termo preferido dos cartolas e políticos, que o evento
deixou para o país? O que você, caro leitor, que observou seu dinheiro ser gasto
sem parcimônia, usufruiu disso? Já que a ideia é “se inspirar” no discurso
evasivo da politicagem, sejamos bem diretos. A herança que os Jogos
Pan-Americanos deixou é cruel com o próprio esporte e com as finanças públicas.
Infelizmente, tudo leva a crer que o mesmo sabor desagradável será degustado
após a Copa de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, ao contrário do que Aldo Rebelo
sugere.
Listemos então o legado, ou a
falta dele. Com custo inicial avaliado de R$ 400 milhões, os Jogos
Pan-Americanos de 2007 custaram R$ 3,7 bilhões. Um estouro de cerca de 300% no
orçamento. A verba, claro, saiu do bolso do contribuinte, que segue sem
esclarecimentos mesmo após relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), que
aponta superfaturamento e contratos firmados sem licitação. Desse valor
exorbitante, por volta de R$ 1,3 bilhão foram injetados em instalações,
definitivas ou provisórias. Instalações “de nível olímpico”, como Nuzman se
gabava. Mas a realidade é um pouco diferente. Todos os locais usados em 2007 e que
serão de alguma forma utilizados em 2016 passarão por reformas totais ou
parciais.
O Complexo Aquático Maria
Lenk, por exemplo, é incapaz de receber a natação na Olimpíada por não ter a
capacidade mínima exigida. Adivinha? Outra instalação será construída para
2016. O local, que deveria honrar o nome da primeira sul-americana a competir
em Jogos Olímpicos, tem graves problemas estruturais (rachaduras e infiltrações nas piscinas). Hoje é
administrado pelo COB porque ninguém quis descascar esse abacaxi. A poucos
metros dali, o Velódromo é ainda mais vergonhoso. Após o Pan, foi usado apenas
para (poucas) competições locais e se tornou refúgio único dos (poucos)
praticantes do ciclismo de pista. Como não serve para a Olimpíada, será
demolido e sua estrutura básica migrará para Goiânia. Custou R$ 14 milhões,
devidamente escoados no ralo. E, óbvio, um novo local será construído para
2016. Com dinheiro público, não custa ressaltar.
Não dá para ignorar também os
ocorridos na Marina da Glória e no Estádio de Remo da Lagoa, áreas tombadas
pelo patrimônio histórico e alvos de batalhas judiciais contra as obras.
Custaram mais de R$ 80 milhões, e para nada. As raias compradas sequer são
usadas atualmente. Foram as piores instalações do Pan, ao lado do campo de
beisebol, provisório mas instalado em cima de um brejo. Um chuvisco deixava a
região inundada e imprópria, tanto que a final do softbol nem pôde ser
realizada. No entorno do “estádio”, muita lama e uma estrutura de palco
utilizada no Rock in Rio de 2001, um amontoado de ferros retorcidos e
enferrujados.
E o que dizer do Maracanã, reformado para o Pan por R$ 196 milhões para ser esquartejado para a Copa
do Mundo de 2014 num período de menos de cinco anos? E como todo crime pede
requintes de crueldade, vão dizimar o Célio de Barros e o Julio Delamare,
patrimônios do atletismo e dos desportos aquáticos do país, para os espaços
virarem estacionamento e novas áreas de acesso. A promessa é de fazer novos
complexos para suprir essas ausências. Quando? Onde? Ninguém faz ideia, se é
que vão fazer. Ah, e o Maracanã ainda pode passar por novas adaptações para os
Jogos Olímpicos, o que a Rio-2016 nega. Veremos.
Tem também o glorioso Engenhão, interditado por problemas na cobertura
com menos de sete anos de vida. Detectado em 2010, e com risco ao público desde
então, só fecharam o estádio em março de 2013. Por que demorou tanto? Para não
atrapalhar as reeleições de Sergio Cabral e Eduardo Paes? Para que a licitação
do Maracanã caia nas mãos de quem os governantes desejam? Respostas que eles
não dão, claro. Aliás, ninguém assumiu essa culpa. Mas quando o problema for
sanado, todos aparecerão para as fotos sorridentes na reabertura.
Para não dizer que não falei das flores, a única bem-sucedida
instalação do Pan de 2007 é a Arena, que ganhou o nome de HSBC por estar cedida
à iniciativa privada. Talvez, sem alguém para cuidar, tivesse o mesmo destino
triste. O espaço, que custou R$ 128 milhões aos cofres públicos, recebe shows,
alguns jogos de basquete e outros eventos esportivos, como o UFC. Mas já que a
ideia é avaliar o legado, qual o benefício dele para a população? Alguém da
região usufruiu do espaço para práticas esportivas ou culturais?
Não sou contrário ao Brasil organizar Olimpíadas ou Copas, mas sou
radicalmente crítico à forma como esse processo é conduzido, basicamente porque
usam dinheiro público sem avaliar qual será o benefício para a população e sem
saber, claro, se o contribuinte aprova essa política. Viena, na Áustria,
realizou um plebiscito para saber se a cidade deveria participar da disputa
para ser sede dos Jogos Olímpicos de 2020. O resultado foi “não”. É, no mínimo,
uma demonstração de respeito de seus governantes ao que aspira uma população.
Eleito em 2 de outubro de 2009 como a sede olímpica e paralímpica de 2016, o
Rio de Janeiro não tem até hoje uma previsão orçamentária oficial e divulgada
publicamente.
Esses eventos esportivos viraram uma grande fábrica de fantasias.
Condicionam obras necessárias de infraestrutura, como ampliação do transporte
público, obrigação de qualquer governante com bom senso, aos Jogos e à Copa.
Gastam bilhões da verba estatal para depois colocarem estádios e arenas para a
iniciativa privada cuidar e salvar o espaço do rótulo de elefante branco.
Todos esses aspectos também causam impacto devastador no esporte
brasileiro, porque os dirigentes pensam que fazer política esportiva é
organizar megaeventos. Acham que gastar bilhões de reais em obras alçarão o
país a potência automaticamente. Os programas que envolvem o desporto escolar e
universitário são ínfimos, o investimento idem. Não há um planejamento
competente para se detectar talentos. Nenhum desses dirigentes que tanto se
orgulham da organização do Pan e da Olimpíada apresenta propostas concretas de
política voltada ao desporto. Mesmo com tanta verba proveniente de loterias e
programas governamentais, o Brasil ainda depende das joias lapidadas em clubes
e financiada por pais e/ou entusiastas do esporte. Esse atleta, que será
cobrado por medalhas olímpicas quando começa a dar resultados, só recebe algum
tipo de aporte quando já é, de certa forma, uma realidade. E olhe lá (nesse
sentido a situação já foi bem pior, acredite). É só pesquisar um pouco sobre a
história de Yane Marques, uma heroína do esporte, detentora da inédita medalha
olímpica para o país no pentatlo moderno com o bronze em Londres-2012 e que até
hoje conta os trocados para treinar e se manter em alto nível. Ou então detectar que, no início de abril
desse ano, a jovem Gabriela Cecchini, de 15 anos, subiu ao pódio no Mundial
Cadete de Esgrima, um resultado histórico, sem ajuda de custo da Confederação
Brasileira de Esgrima. Ela só viajou à Croácia porque seu clube, o Náutico
União, de Porto Alegre (RS), e seus pais racharam os custos. Quem não tem esse
privilégio fica no meio do caminho, e desta forma os talentos escapam pelos
dedos. Não é o que se espera de uma nação que sonha em ser grande.
Argumentos e exemplos não faltam para enterrar o discurso otimista das
autoridades, esses sim com algum
“legado” para colher de todo esse processo, pois ganham status político e se
perpetuam ou dão saltos maiores. O Pan de 2007, ao contrário do que sugere as
frases que abrem esse texto, não revolucionou o esporte, não entregou instalações
de alto nível nem nasceu graças ao bom uso de dinheiro. Serviu, acima de tudo,
como brecha para mais gastança e desmando com o patrimônio público, sem que o
esporte se beneficiasse diretamente com
isso. A partir de 2016 teremos um novo legado para avaliar. O que será do
esporte brasileiro após os Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro? Uma coisa é fato:
barato não vai custar.
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