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Opinião: Notas sobre o caso Froome

Por Sergio Arenillas (Narrador do SporTV)

Na era recente do ciclismo os principais casos de doping envolveram substâncias hormonais, notoriamente relacionadas com ganhos nos rendimentos físicos (EPO, corticoides, anabólicos). Foram tão comuns que viraram sinônimo de toda uma geração. Atualmente a questão tem se voltado no âmbito respiratório, onde a relação entre uso e resultado é difusa e cinzenta.

As substâncias
Estamos falando de broncodilatadores. No caso do ciclismo de dois especificamente: Salbutamol e Terbutalina. Tenho problemas respiratórios desde sempre. Inalações hoje são bem menos frequentes, com exceção de casos extremos, mas talvez meu primeiro amigo foi o Berotec. É o nome comercial de outro broncodilatador (Fenoterol, segundo o Google).

São substâncias e alternativas comuns para uso imediato, não preventivo. São usadas para conter sintomas já manifestados, não para preveni-los. Como usuário conheço os efeitos, principalmente tremedeira e aumento das batidas cardíacas (taquicardia). Como apreciador do esporte, não consigo ver benefício em nenhum desses efeitos colaterais.

As substâncias no outro extremo desses sintomas são os betabloqueadores. Estes relaxam, reduzem tremores, diminuem o ritmo cardíaco. Inclusive são considerados doping em vários esportes, como Golfe e Tiro com Arco.

A questão com os dilatadores é: a princípio são substâncias usadas em uma situação presente ruim para te fazer voltar ao normal e não para te deixar melhor do que é normalmente. Convenhamos que Chris Froome normal (e como atleta de elite) é melhor que muita gente comum que hoje lhe julga. Daí partir para que o seu normal é automaticamente dopado é irresponsável. Aliás, em 2014 ele já foi flagrado usando um inalador durante uma prova. Inclusive admitiu se tratar de Ventolin (nome comercial do Salbutamol).

Callum Skinner, que brilhou na Rio 2016 já divulgou seus históricos de TUE (isenções terapêuticas), também com presença do Salbutamol.

Ao meu ver o grande problema do doping hoje não é o proibido e sim o limite do tolerável (ex Meldonium e o que fez no esporte esse ano). O caso Froome mexe exatamente com essa área difusa.

Com os vazamentos Fancy Bears, revelando TUEs de vários atletas, esse mecanismo de respaldo virou objeto de julgamento. Criminalizá-lo não é o caminho, na minha opinião. E acho compreensível que atletas hoje prefiram passar, consciente ou inconscientemente um certo limite do que submeter uma TUE.

Salbutamol e Terbutalina são substâncias permitidas pela WADA (desde que inaladas e não injetadas) e usadas puramente como alternativas. A única diferença esportiva entre elas é que para a primeira existe um limite tolerável (1000ng/ml na urina ou 1600mg durante um intervalo de 24 horas) e para a outra há necessidade de uma TUE (por não ser possível identificar seu modo de utilização).

Um atleta pode superar o limite desde que solicite uma TUE. Pode ter sido um descuido de terceiros? Sim, mas isso não o isenta de uma punição. Em abril do ano passado Simon Yates foi desclassificado da Paris Nice e suspenso pela Terbutalina. A falha no caso foi da equipe que não providenciou a TUE. Foi tratado como um doping não intencional. Mas o resultado foi invalidado e a suspensão veio.

Com Froome o resultado foi para Salbutamol. Atualmente nenhum ciclista está cumprindo suspensão pelo seu uso, porém dois italianos recentemente foram banidos por alguns meses com ela: Diego Ulissi cumpriu 9 meses em 2014 após ser flagrado com 1920ng/ml e Alessandro Petacchi cumpriu 1 ano em 2007 por 1320ng/ml. Froome teria testado para 2000ng/ml.

Com precedentes, e olhando puramente de fora, apenas com notícias, é muito difícil que um destino diferente se apresente. Porém o caso está longe de estar definido, muito menos encerrado. Mal comparando com o sistema jurídico: Froome apenas foi citado (oficialmente em 20/09, dia do contra relógio do Mundial e publicamente ontem). Daí para a condenação é outro papo.

É um debate extremamente complicado. Sem a TUE você cumpre um limite. Com ela você usa a vontade, inclusive de formas injetáveis (ex Bradley Wiggins e a Triamcinolona). Vira um juízo moral e de valor similar ao “o que você faz quando ninguém está te vendo”, “é pior passar do limite ou não ter um limite?”, enfim.

Não fazendo nenhum julgamento encerro: a asma não afeta todos da mesma forma. Uns podem precisar de maiores e/ou mais regulares doses, outros não. Por isso estabelecer um parâmetro comum é difícil para não dizer impossível. Hoje temos um limite estipulado muito mais pelo bom senso.
Asma no esporte e no ciclismo

Em entrevista ao site CyclingTips em abril do ano passado (durante o furacão Yates), o médico irlandês Conor McGrane aponta alguns possíveis fatores sobre essa relação. Entre elas sugere a de condição/preferência por alguns esportes como natação ou o próprio ciclismo e o uso extremo dos pulmões e de sua capacidade nelas, acima do comum em pessoas normais, por atletas de elite. Conor ainda apresenta outros possíveis fatores, como a exposição e a prática da atividade em ambientes externos secos/frios e também a exposição à poeira cotidiana.

Em 2014, o jornal britânico Guardian, publicou um estudo que apontava que 70% dos nadadores nacionais e 30% dos ciclistas da Sky sofriam de problemas respiratórios. No âmbito cotidiano essa incidência variava entre 10% da população.

A Sky é a equipe mais rica do pelotão e recentemente se vangloria pela estrutura própria que carrega consigo para as grandes provas. Um mau hotel, com condições estruturais precária é algo inexistente se tratando de Froome. Já a questão climática já foge do controle de qualquer equipe.

Em outra entrevista, publicada pelo site CyclingWeekly também no ano passado, o doutor John Dickinson da Universidade de Kent chega a destacar potenciais efeitos positivos dos dilatadores em sprints mas não para resistência prolongada. Dickinson, assim como McGrane, também destaca as propensões de atletas e especialmente ciclistas desenvolveram inflamações respiratórias.

O mesmo portal publicou outras reportagens sobre o tema e inclusive um editor fez um experimento com o Salbutamol, não indicando nenhuma melhora. Por fim, indico esse artigo do site The Inner Ring que também apresenta estudos de uso e efeito da substância.

Timing da notícia
Talvez o que mais pese contra Froome nesse momento é o timing da revelação. Estamos em um período entre temporadas. As contratações já se consolidaram, uniformes foram revelados, rotas divulgadas, calendários individuais. Notícias são necessárias para preencher espaço, como em qualquer outro esporte. Nada melhor que uma novela.

Estamos falando de Froome e da equipe Sky, ambos extremamente visados e invejados pelo orçamento e sucesso alcançados nos últimos anos. Froome surgiu no esporte em 2011, curiosamente na Vuelta, aos 26 anos. Tarde. Por si só motivo de suspeita para muitos. Lembrem-se, no final de 2011 a atmosfera no ciclismo era tensa pelas punições retroativas que não tardariam para Alberto Contador e Lance Armstrong. Qualquer caso de sucesso era visto como maus olhos. No ciclismo a primeira impressão conta muito e a primeira dúvida de credibilidade é fatal.

Se tratando de Sky o problema é maior já que apenas soma às acusações contra Wiggins e pacotes misteriosos, aos problemas racistas e anti-desportivos contra Gianni Moscon e claro à relação próxima com a British Cycling, mergulhada em denúncias de assédio e abusos morais de seus treinadores.

Froome agora passará por um perigoso escrutínio retroativo. Suas declarações serão revistas, como em janeiro desse ano quando disse, após vazamentos Fancy Bears revelarem TUEs solicitadas pela Sky em anos anteriores, que “não se sentia moralmente apto para pedir uma TUE na última semana de uma Grande Volta”. Ou ainda a entrevista que deu no dia apontado como o do resultado adverso. Nele dizia que estava se sentindo muito melhor e que os rivais estavam mostrando sinais de cansaço após repetidos ataques nos dias anteriores. Voltarão seguramente na sua autobiografia de 2014, já questionada após o uso do inalador durante a Dauphiné do mesmo ano, onde não faz referência à nenhuma condição pulmonar.

Juridicamente Froome vai se defender com todo o respaldo de Dave Brailsford e cia. Afinal a reputação, o legado histórico e até a continuidade da Sky estão em jogo nesse caso como em nenhuma outra acusação. Devem ser apresentados estudos e históricos farmacológicos, o modo de utilização (inalada, oral, intravenosa) do Salbutamol deve ser identificado, etc. Vai longe. Talvez ele até dispute o Giro com essa questão em aberto.

Pontos finais
Froome não está suspenso, logo não deve ser condenado e midiaticamente massacrado. É um caso em andamento e não encerrado. Possibilidade e probabilidade são coisas distintas. Muita calma antes de tomar alguma conclusão, falar em Vicenzo Nibali campeão da Vuelta ou medalhas mundiais para Nelson Oliveira. Froome pode receber apenas uma repreensão ou receber uma punição máxima de 2 anos. Ele só perde a Vuelta quando tribunais reguladores esportivos decidirem. Não quando alguma manchete reducionista estipular.

Foto: EPA



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