Últimas Notícias

Surto Entrevista: Sérgio Mitsuo Vilela

Por Juvenal Dias

Imagine uma pessoa bem sucedida em sua profissão, a ponto de trabalhar em um país como a Suíça fazendo o que gosta, ter condições para se aprimorar com mestrados e doutorados, construir uma família e ainda representar o Brasil em uma modalidade olímpica. Podemos contar nos dedos quantos são estes felizardos. 

Um destes é Sergio Mitsuo Vilela, advogado, mestre em administração de empresas e direito internacional, doutorando em direito tributário internacional pela Universidade de Zurique, fala quatro idiomas, trabalha em um escritório suíço e é jogador de Curling. Este piracicabano será um dos representantes brasileiros no Mundial de Times Mistos, que será disputado em Champéry, na Suíça, no início de outubro e depois competirá no Brasileiro de duplas mistas, pensando nos Jogos Olímpicos de PyeongChang, em 2018 (vale lembrar que será a primeira edição que o esporte será disputado nesta vertente de um homem e uma mulher juntos).

Em sua breve passagem pelo Brasil, Sergio bateu um longo papo conosco via e-mail. Ele falou como concilia a vida acadêmica, de trabalho e esportiva, explicou aspectos técnicos da modalidade, falou de sua expectativa para o país ser representado pela primeira vez em Olimpíada e até de sugestões que tem para modificar algumas regras do Curling. Confira a entrevista na íntegra:

- Você é advogado, mestre em administração de empresas e em direito internacional, doutorando em direito tributário internacional na Suíça. Como foi parar no Curling? Há quanto tempo pratica? Como concilia a carreira com a vida de atleta?

Em primeiro lugar, muito obrigado pela oportunidade de divulgar o Curling. É uma honra participar do Surto Olímpico! Eu "descobri" o Curling em 2010, assistindo a Olimpíada de Inverno de Vancouver. Eu fiquei tão encantado que enfrentei filas gigantes para poder deslizar na "pista" que montaram no Shopping Eldorado em São Paulo. Adorei e prometi para mim mesmo que um dia ia fazer aquilo. Eu pratico Curling desde 2013, quando chegamos a Zurique. Minha esposa Daniela recebeu uma proposta de emprego aqui e, como inicialmente eu não poderia trabalhar, retornei à vida acadêmica (fui aprovado para o Doutorado na Universidade de Zurique) e isso me facilitou a entrada no Curling (a Atlética da Universidade organiza cursos de iniciantes, que são realizados durante todo o primeiro semestre letivo). No entanto, assim que meu curso de Curling começou em 2013, eu acabei recebendo visto de trabalho e tive a sorte de encontrar um escritório de advocacia suíço especializado em direito brasileiro (Bravest www.bravest.ch, um dos principais patrocinadores da seleção brasileira de Curling), cuja flexibilidade me permitiu conciliar trabalho, treinos e aulas. A preocupação com o equilíbrio profissional x pessoal é uma prioridade também do meu atual empregador (www.kendris.com, empresa referência na Suíça para planejamento patrimonial e estruturas fiduciárias, que me concede ausências remuneradas para as minhas funções esportivas, seja jogando pela seleção brasileira seja como representante do Brasil junto à Federação Mundial de Curling - WCF), o que aliado a uma esposa maravilhosa e que me incentiva sempre (meu filho Lucas, hoje com dois anos e meio, era recém-nascido quando participei do Américas Challenge 2015, por exemplo), permite que eu concilie os três.

- O curling é um esporte que requer muito raciocínio e estratégia. No Brasil, há uma concepção de que quem tem tantos títulos acadêmicos é muito inteligente ou, no mínimo, mentalmente muito esforçado. Você acredita que essa inteligência ajuda na tomada de decisões durante o jogo?

Pelo menos para mim, obter um título acadêmico depende mais de "esforço", mas este só é efetivo quando combinado com "concentração". Esta fórmula serve tanto para a universidade, quanto para o Curling ou para o Kenjutsu (esgrima samurai, que eu pratico há 11 anos sob orientação do Sensei Jorge Kishikawa - que sempre me orienta quando estou no Brasil). Eu gosto de jogar como "Segundo" no Curling de quatro pessoas, que é uma posição bem dinâmica, tanto por ter que varrer as pedras dos outros três jogadores, quanto por as minhas pedras serem normalmente "take outs" (pedra lançada mais rapidamente, com objetivo principal de remover as pedras do adversário). Jogando como Segundo, eu não tomo muitas decisões (já que é o Capitão quem decide a jogada), mas eu preciso de muito "esforço" (treino físico intenso para aguentar varrer tantas pedras e treino técnico para lançar a pedra, já que no "take out" um centímetro é a diferença entre tirar a pedra do adversário ou a sua "passar direto") e de "concentração" (deslizar exatamente na linha da vassoura seguradas pelo capitão, na velocidade exata que ele pediu, para poder soltar a pedra com a quantidade exata de rotação que vai fazer a curva necessária para atingir o alvo).

- Como é o treinamento para resistir varrer o gelo tantas vezes em uma partida?

O treinamento de varrida é 50% físico e 50% mental. O treinamento físico geralmente envolve subir e descer a pista varrendo e várias horas de exercícios aeróbicos (no meu caso, na máquina elíptica). O treinamento mental envolve acompanhar pedras lançadas e concluir onde ela vai parar (usamos o código clássico de dividir o lado oposto do gelo em 10 áreas, sendo o "7" o Tee Line), informação fundamental para que o Capitão possa decidir se devemos varrer ou se deixamos a pedra deslizar sozinha.

- Aplicar "take-outs" é uma responsabilidade enorme. Retirar as pedras adversárias significa limpar caminho para seu time. Seu jogo acaba sendo mais de força, mas não pode perder a precisão. Como funciona essa dinâmica?

O lançamento de Curling pode ser resumido em uma palavra: consistência. Em cada sessão de duas horas de treino eu lanço mais ou menos umas 100 pedras, de maneira que o processo de lançamento fique "automático": 1- movimentar a pedra para frente; 2- levantar o quadril; 3- movimentar a pedra para trás; 4- alinhar a pedra com a vassoura; 5- iniciar a pedra no sentido da vassoura; 6- colocar o pé com o slider na posição embaixo do corpo e atrás da pedra; 7- empurrar o corpo para frente com a perna de trás; 8- deslizar e abaixar o centro de gravidade; 9- iniciar a rotação da pedra; e 10, soltar a pedra na direção da vassoura. Caso essa sequência toda, que dura em média 3,6 segundos, não seja perfeita, provavelmente eu vou errar a jogada. No entanto, se eu tentar conscientemente pensar nessa sequência, é muito provável que eu vá cair (lembrando que tudo isso é feito em cima do gelo, com um sapato com solado de teflon). O segredo é repetir e repetir, até que o corpo faça no automático. Quando você chega nesse nível de automação, a única diferença de um "draw" ou um "take out" é quão rápido você faz a sequência /quão forte você empurra o "hack". Como diz o meu antigo técnico Rodger Schmidt (atual técnico da Rússia/Sidorova), a única diferença entre eu e a Sidorova é que ela já fez essa sequência umas cem mil vezes a mais que eu...

- Você integra a equipe brasileira que participará do Mundial misto em outubro, a ser realizado na Suíça. Como está a preparação sua e da equipe?

Estou muito honrado por mais uma vez ser parte de uma seleção brasileira! Eu tenho muita sorte por o clube de Baden (35 km de Zurique) ter gelo durante onze meses no ano (quando o normal do mundo todo - o que inclui o meu Clube Grass Hoppers-GC - é apenas de setembro à março), então tenho treinado duas horas duas vezes por semana e jogado um campeonato por mês desde junho, acompanhado da minha parceira Thaisa Adrover para o Campeonato Brasileiro de Duplas, que ocorrerá em novembro, em Toronto, e a minha técnica pessoal Nicole Glükler, que será a técnica do Brasil no Mundial. O restante da equipe (Lead Luciana Barrella, Terceira Aline Gonçalves e Capitão Marcelo Mello) vem fazendo treinamentos físicos enquanto aguarda ansiosamente a volta do gelo em setembro.

- Você tem um privilégio de um treino contínuo. No entanto, pelo que você fala, o restante da equipe não tem essa mesma condição. Isso gera um desequilíbrio? Como compensar?

Na verdade, é o contrário. Eu sou o mais "calouro" do time, com quatro anos de experiência (Marcelo e Aline jogam há dez anos e a Luciana há sete). Graças ao treino contínuo eu estou "tirando o atraso", pois eles precisam de muito menos treino que eu. No fim, o meu "privilégio" é eles aceitarem um iniciante como eu no time com eles!

- De certa forma, você estará jogando em casa no Mundial. Se sente bem com essa questão ou acredita que tem um peso maior?

Sim, eu sinto que estou jogando em casa, mas eu encaro como um motivador extra. Por um lado, vários dos meus amigos suíços do Curling estarão lá para torcer por mim e isso me motiva. Por outro, isso também gerou uma carga "administrativa", como conseguir gelo na semana anterior de concentração/entrosamento ou patrocinador local (www.grossstahbil.com, cujos proprietários Silvia e Walther Gross são meus clientes e amigos pessoais).

- A edição de PyeongChang dos Jogos Olímpicos de Inverno será a primeira a ter o curling disputado, além dos quartetos masculinos e femininos, com duplas mistas. Acredita que é uma tendência para as próximas edições, inclusive ingressando a modalidade de quarteto misto?

Não, pelo menos de acordo com os documentos técnicos da WCF. Duplas Mistas foi uma resposta à crescente dificuldade de formação de times de quatro pessoas em nações onde o Curling não é tão popular, como no Brasil. É mais fácil para uma dupla "largar tudo" para se dedicar ao Curling competitivo que quatro pessoas. No entanto, o evento ficou tão grande (39 times no Mundial de 2017, sendo que apenas oito se qualificam para a Olimpíada), que a WCF pretende "dividir" o Campeonato Mundial em eventos "A" e "B". Já o Campeonato de Times Mistos, que vai para a sua terceira edição, tem por objetivo, na minha opinião, viabilizar experiência internacional para mais jogadores, mas não garantir um nova "via" para a Olimpíada.

- Ao que dá para entender é mais fácil que o COI traga competições de duplas para o masculino e feminino nos Jogos Olímpicos do que insira quartetos mistos?

Não, eu quis dizer que é mais fácil o Brasil qualificar um time masculino ou feminino via o novo "Qualifier" para os mundiais de times (que vai o número de times aumentado de 12 para 13 ou 16) e daí para as Olimpíadas. Qualificar uma dupla mista no top 7 no mundial de dupla mista é muito mais difícil. Não há qualquer movimento em transformar quarteto Misto em disciplina olímpica, ou criar dupla masculina ou feminina.

- O Brasil nunca participou deste esporte na história da Olimpíada. O quão distante você acredita que o país está de alcançar este feito? Como você vê a evolução na modalidade? Com times mistos acredita que os brasileiros ganharam mais chances de se classificar?

Não muito distante, caso a nova proposta de aumentar a quantidade de times nos mundiais de time feminino e masculino via evento Qualifier seja aprovado no próximo Congresso da WCF, que será de 14 a 17/9 na Eslovênia. Na sistemática atual, dez times vão para as Olimpíadas: um por ser sede, sete por serem os mais bem qualificados nos dois Mundiais anteriores à Olimpíada e dois que se qualificam via o Qualifier Olímpico, no qual podem participar todos os times que jogaram durante os quatro Mundiais anteriores à Olimpíada. Ou seja, basta jogar um Mundial para ter a chance de qualificar para a Olimpíada (via o Qualifier)! O problema do Brasil é que, para chegar às doze vagas do Mundial, nós temos que classificar nas Américas (que tem duas vagas no Mundial, sendo que Europa tem oito e Ásia tem duas). A regra diz que o segundo time no ranking mundial do continente (Canadá geralmente é o primeiro e EUA, os segundos na América) é desafiado por todos os times da região (hoje apenas o Brasil, mas em breve Guiana, México e Haiti também devem participar) e, nas três tentativas até hoje (2010, 2011 e 2015), nós perdemos. Caso a proposta da comissão de atletas de aumentar o número de vagas para 13, sendo que este novo lugar iria par o campeão de um Qualifier (entre o 3º das Américas, o 3º e 4º da Ásia e os 9º a 12º da Europa e a sede), seja aprovada, nossa chance para ir para uma Olimpíada fica bem maior! Em minha opinião, este caminho é mais provável que uma classificação entre as sete duplas mistas mais bem colocadas e a oitava vaga vá para a sede ou que Times Mistos virem disciplina Olímpica. Por isso, neste ano nós vamos desafiar novamente nas Américas, sendo que em Janeiro de 2018 nós vamos jogar contra o Canadá (já que os EUA são sede do mundial masculino 2018), já como preparação do Qualifier.

- O Canadá é o principal país, em termos de conquistas olímpicas. Serão eles os principais favoritos para o Mundial misto e para as duplas mistas na Coreia?

O Canadá não teve resultados muito expressivos em times mistos, sendo eliminado em 2015 e 2016 nas quartas-de-finais. Já em duplas mistas, eles chegaram a uma final pela primeira vez em dez anos de competição. Eu arriscaria dizer que os meus amigos Martin Rios e Jenny Perret, da Suíça, são os grandes favoritos para duplas na Coréia, já que a Confederação Helvética conquistou seis dos dez ouros já disputados em mundiais. Já para times mistos é muito difícil arriscar pois não foram divulgados todos os atletas e sempre há bastante renovação nos times (no nosso caso, apenas a Luciana participou em 2016 e em 2015 a Isis estava no time, no lugar da Aline). O que posso dizer é que caímos em um grupo equilibrado e que vamos nos esforçar ao máximo para conquistar a primeira vitória de um time brasileiro em campeonato mundial!

- Quando não é inverno no hemisfério norte, como faz para treinar?

Como eu disse, em Baden eu consigo treinar de junho a abril, então estou sempre no gelo, ainda que não tão frequentemente durante o verão. Para compensar, eu tenho uma máquina de exercício elíptico em casa e eu faço musculação com estimulação elétrica duas vezes por semana. Além disso, já existe o Floor Curling (da Rock Solid), que permite jogar sem gelo.

- Como funciona esse Floor Curling?

É a maneira que a WCF recomenda para introduzir o Curling em áreas em que uma arena de Curling seja muito difícil/pouco prática. Basicamente, é uma pista de plástico, em que se joga Curling com "pedras" de plástico (na verdade, elas são tipo uns carrinhos com rodinhas)

- Como ou com o que a CBDG ajuda para preparação de competições importantes?

A CBDG auxilia na parte administrativa e com custeio parcial das despesas com preparação e deslocamento para a competição. O restante vem de patrocinadores (obrigado Bravest, Gross Stahbil, Kendris e Foxglide) e de recursos do Bolsa Atleta (muito obrigado CBDG, COB e Time Brasil) e próprios (obrigado Daniela e Lucas, por receberem o time misto na nossa casa durante a semana de concentração/preparação).

- Fiquei sabendo que você está propondo mudanças de regras para a Federação Internacional. É isso mesmo? Quais seriam essas mudanças?

Nossa! Você está muito bem informado! Sim, eu mandei uma sugestão de alteração das regras, que será discutida no Congresso na Eslovênia, mas é um pouco complicado explicar a proposta sem falar do contexto. No ano passado tivemos a crise do "broomgate" (trocadilho em inglês de "Watergate" e broom/vassoura), que resultou na WCF obrigando que todos os jogos oficiais sejam disputados com o mesmo tipo de almofada nas vassouras e na criação de uma regra para evitar que os jogadores ficassem trocando a vassoura (aquela coisa horrível de ficar jogando a vassoura de um lado para o outro da pista, para garantir que pelo menos uma almofada não estivesse tão gasta no último end). Essa regra diz que, em caso de um jogador varrer uma pedra com a vassoura de outro jogador, essa pedra deverá ser removida do jogo (e, consequentemente, eventuais pedras deslocadas deveriam voltar para a posição antes da pedra ser jogada). A minha sugestão é que a pedra só deveria ser removida do jogo se o time "inocente" (que não varreu com a vassoura de outro jogador) QUISER remover a pedra, que é a mesma consequência já existente se um jogador "queimar" (tocar) uma pedra em movimento. Na minha cabeça de advogado, não é "justo" que o time que cometeu a falta seja "beneficiado" com a remoção de uma pedra que pode estar em favor do time inocente (ou, pior, que um time deliberadamente varra uma pedra com a vassoura errada, com o objetivo de removê-la do jogo).


Fotos: Facebook Sergio Mitsuo Vilela e CBDG

0 Comentários

.

APOIE O SURTO OLÍMPICO EM PARIS 2024

Sabia que você pode ajudar a enviar duas correspondentes do Surto Olímpico para cobrir os Jogos Olímpicos de Paris 2024? Faça um pix para surtoolimpico@gmail.com ou contribua com a nossa vaquinha pelo link : https://www.kickante.com.br/crowdfunding/ajude-o-surto-olimpico-a-ir-para-os-jogos-de-paris e nos ajude a levar as jornalistas Natália Oliveira e Laura Leme para cobrir os Jogos in loco!

Composto por cinco editores e sete colaboradores, o Surto Olímpico trabalha desde 2011 para ser uma referência ao público dos esportes olímpicos, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo.

Apoie nosso trabalho! Contribua para a cobertura jornalística esportiva independente!

Digite e pressione Enter para pesquisar

Fechar