O técnico anuncia: “Hajimê!”. O tatame vira um salve-se quem puder.
São quatro contra um. Repetidamente, os sparrings, atletas de apoio,
partem para cima do brasileiro convocado para os Jogos Olímpicos, que
deve derrubar todos e em tempo recorde. Quem acabar primeiro com os
adversários vence a competição interna e solta um grito de comemoração e
alívio. O cenário quase de guerra tem o objetivo de não proporcionar
qualquer tempo para reflexão. É ver o rival e saber como derrubá-lo
rapidamente.
“É um treino bem duro, puxado, mas ao mesmo tempo divertido. Aqui
mesmo a gente já começa uma competição sadia para aumentar a velocidade e
ver quem acaba mais rápido”, brinca Charles Chibana (-66kg), após uma
sessão de muito suor no tatame montado em um hotel em Mangaratiba, a
cerca de 100km da cidade do Rio de Janeiro, mesmo palco da aclimatação
para o Pan de Toronto, no ano passado.
Pela primeira vez, cada um dos 14 judocas convocados para os Jogos
tem a seu dispor quatro atletas de apoio. Na edição de 2012, quando a
equipe também fez a aclimatação final em outra cidade, Sheffield, eram
dois. “Eles foram selecionados durante oito treinamentos que tivemos,
onde vimos os que se enquadravam melhor. Todos são atletas jovens, com
menos de 24 anos, e com história e resultados nas equipes de base do
Brasil”, explica o gestor técnico de alto rendimento da Confederação
Brasileira de Judô (CBJ), Ney Wilson.
As exigências para treinar com os representantes olímpicos a poucos
dias da estreia, contudo, não acabam aí. “Temos sempre dois atletas
destros e dois canhotos para fornecer melhor qualidade no treinamento”,
detalha o dirigente. E o que eles mais fazem é o que ninguém quer que
aconteça com um brasileiro na disputa olímpica: cair.
“Os sparrings sofrem demais! Isso é só um treino e cada atleta vai
ficar aqui 10 dias. Eles vão cair umas mil, mil e quinhentas vezes, e
sempre com disposição e me incentivando a ir para cima”, calcula a
brasiliense Érika Miranda (-52kg). “O judô é um esporte individual, mas
que você só treina coletivamente, então é impossível conseguir algo
sozinho. Eles fazem parte de toda preparação. Acho que quando eu subir
naquele tablado olímpico todos eles vão subir junto comigo”, ressalta.
Os judocas de apoio, contudo, têm uma função estratégica que vai bem
além da ideia de servirem como saco de pancadas aos mais experientes.
“Todos eles têm um papel importante de estudar os principais adversários
e de exercerem esse papel em cima do tatame. Então cada atleta tem um
nome diferente do deles. É o nome do adversário”, dramatiza Ney Wilson.
“Eles têm a hora de estudo de imagem e trazem para replicar isso dentro
do treinamento”, acrescenta.
Para a equipe olímpica, esse ponto de apoio tem sido crucial. “Quando
estou fazendo a parte física, meus atletas estão no tatame assistindo
lutas das minhas adversárias. No treino de quimono eles já sabem o que
têm que fazer para me ajudar”, destaca Rafaela Silva (-57kg), campeã
mundial em 2013. “Eles ajudam bastante porque assistem aos vídeos das
nossas adversárias e já vêm treinar de forma direcionada. A gente chega
aqui, troca as informações e estuda”, conta a peso pesado Maria Suelen
Altheman. “Antes eu tinha que treinar com a Mayra (Aguiar), então as
duas tinham que cair. Com os apoios, eles caem e fazem tudo por nós,
estão vivendo nossos sonhos junto com a gente”, completa.
Qualquer característica de luta de um importante rival entra para o
mapa de simulações a serem feitas nos exercícios. “Os técnicos já sabem
as situações que incomodam a gente e pedem para os sparrings fazerem
justamente isso. Eles têm me amassado bastante”, diverte-se Victor
Penalber (-81kg), mostrando os arranhões que já exibe no rosto. “Neste
momento, a gente tem que acertar detalhes e principalmente simular
situações de risco. Ter a capacidade de mudar a estratégia e se
reinventar durante a luta é importante para a gente passar pelos Jogos
Olímpicos”, avalia o judoca estreante na competição.
Mudanças após quatro anos
Além de um maior número de companheiros de treinos, a aclimatação
final da seleção olímpica ganhou outras importantes adaptações no ciclo
atual em relação ao vivenciado em Londres-2012. As judocas da equipe
feminina têm, pela primeira vez, uma equipe de apoio formada também por
homens. “Todas as meninas têm ao menos um menino treinando junto. Nossas
atletas são fisicamente fortes e muitas vezes as mais jovens da mesma
categoria não têm tanta força, tanta potência”, justifica Wilson.
A chegada em Mangaratiba foi feita de forma escalonada, por
categorias, assim como será o desembarque na Vila Olímpica, sempre na
antevéspera de cada competição. “Todos terão dias de folga para termos
menos atletas dentro do tatame. Assim temos um maior foco do treinador
em um número menor”, continua o gestor, explicando ainda que hoje há
dois técnicos dividindo as responsabilidades pelos atletas, tanto no
feminino quanto no masculino.
O que não mudou de uma edição olímpica para outra foi a decisão de
manter a seleção brasileira afastada por mais tempo do convívio com
outros atletas e países. “A gente optou por ficar em Mangaratiba,
distante, sem tumulto, sem ouvir muita história de Olimpíada e focados
para fazer um belo resultado”, define Ney Wilson.
Ficar longe do burburinho não foi motivo de reclamação. “Tenho
certeza de que a vila é uma atração à parte e eu vou querer conhecer
depois, comer no refeitório, ver outros atletas, mas por enquanto só
penso em medalha”, garante Penalber. “Ficou mais natural, como se não
fosse Olimpíada, mas uma competição normal. Você faz seu trabalho no dia
a dia, sem ver aquele clima tenso”, opina Sarah Menezes (-48kg), ouro
em 2012. “Aqui a gente tem essa vivência de um treino fechado e
específico para nossos adversários. Na vila a gente teria que dividir
espaço no tatame e horário com eles, então não daria para treinar algo
diferente”, acredita Rafaela.
Conselhos de ouro
A aclimatação em Mangaratiba segue um ritmo pesado, mas intervalado
com momentos de descanso. “Nossa rotina é acordar às 8h da manhã, tomar
café e vir para o treino às 9h. Depois faço o físico porque gosto de
queimar um pouco mais. Volto para o quarto, tomo um banho, almoço e faço
fisioterapia e alongamento. Aí temos um treino das 15h30 às 17h, e
depois o tempo é livre. Temos piscina, sauna, ofurô, área de lazer com
jogos”, conta Sarah.
Nesse período, os atletas ainda estão recebendo visitas ilustres. A
cada dia contam com a presença de ex-judocas e medalhistas olímpicos.
Nesta quinta-feira (29.7), foi a vez de Aurélio Miguel (ouro em
Seul-1988 e bronze em Atlanta-1996) e Walter Carmona (bronze em Los
Angeles-1984) subirem ao tatame com os brasileiros. “Ontem ele chegou e
acompanhou nosso treino da noite. O Aurélio é um ídolo da minha
categoria. Ter ele em cima do tatame e dando dicas, apoiando, é
extraordinário”, comemora o meio pesado Rafael Buzacarini. “Ele também é
canhoto e estava me explicando como fazia quando lutava com outro
canhoto. É legal essa troca de informação com um campeão olímpico”,
acrescenta Maria Suelen.
Para Aurélio Miguel, a equipe do Brasil está preparada e com todos os
instrumentos para uma grande participação olímpica. Precisa, contudo,
atentar para um detalhe crucial. “Eles tiveram uma ótima preparação, com
todas as condições, muitos intercâmbios, toda equipe multidisciplinar
dando amparo. Agora depende deles. O grande aspecto de uma competição
como Jogos Olímpicos é a questão do psicológico”, avisa. “Quando eu
competia, eu falava que a Olimpíada era uma agressão psicológica.
Realmente a pressão é muito grande”, pondera. “O frio na barriga vai
ocorrer com qualquer atleta. Até com os ‘homens-gelo’, que era como a
gente chamada os soviéticos, que não se manifestavam de nenhuma forma”,
brinca o campeão.
Sorteio das chaves
O próximo dia 4 de agosto, véspera da cerimônia de abertura dos Jogos
Olímpicos, será fundamental na finalização das estratégias de
competição para cada judoca. Com o sorteio das chaves de todas as
categorias, o caminho dos brasileiros na busca pelo pódio será, enfim,
desenhado. “Esse é o dia mais importante do ponto de vista geral,
olhando a equipe como um todo”, aponta Ney Wilson. “O sorteio é
fundamental para a gente ver o que vai acontecer, estudar realmente
nossos adversários e poder traçar a melhor estratégia e tática para
enfrentá-los”, argumenta. Dos 14 brasileiros, Sarah Menezes, Érika
Miranda, Mayra Aguiar, Felipe Kitadai, Victor Penalber e Rafael Silva
serão cabeças de chave.
Foto: CBJ
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